Corpo e saúde: concepções de um grupo de idosos de Práticas Corporais de uma Unidade Básica de Saúde em Goiânia

Nayara Santana Letícia Silva Bruno Custódio Tadeu João Baptista Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem como objetivo investigar as concepções de corpo e de saúde entre os idosos, inseridos nas práticas corporais, vinculados ao grupo Esporte e Lazer, que pertence a uma Unidade Básica de Saúde em Goiânia. A pesquisa tem caráter qualitativo. Foram realizadas seis observações registradas por diário de campo com cerca de 30 integrantes e um grupo focal juntamente a cinco idosos. As informações foram submetidas à análise de conteúdo. Os resultados da investigação apontam concepções híbridas, de forma que elementos presentes na vida do indivíduo são confrontados com os vivenciados pelas práticas em saúde. As práticas corporais se conformam como experiências de vida significativas rumo a uma perspectiva integrativa. Nesse sentido, ainda que sejam evidenciados elementos entre os idosos que impulsionam a apreensão de fatores biopsicossociais, eles frequentemente apresentam aspectos que reduzem o corpo ou a saúde ao determinismo biológico. Assim, é necessário que os profissionais que acompanham o grupo de idosos realizem proposições diferenciadas.

Palavras-chave:
Corpo; Saúde; Idoso; Práticas Corporais

Introdução

O conhecimento sobre o corpo é infindável e podemos contemplá-lo por diversos prismas. Para uma compreensão maussiana, o corpo é tridimensionalmente visto como algo biológico, psicológico e sociocultural, não havendo sobreposição entre essas dimensões (Mauss, 2015MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 2015.). Amparado nessa base, o sociólogo francês David Le Breton elaborou um conjunto de obras a respeito do corpo, que ficou conhecida por “antropologia do corpo e modernidade” (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.). Em tal obra, o autor confronta o modo pelo qual a modernidade é evidenciada no e pelo corpo, posicionando-se favoravelmente aos estudos que o encaram em termos socioculturais. Direcionando-se à modernidade, o autor deixa subentendida a existência de uma antropologia associada ao corpo, mas com um olhar moderno, tal qual pode ser evidenciada interdisciplinarmente com a saúde. É no contexto de tal tradição acadêmica, amparada pela multiplicidade de olhares, que esta pesquisa se inicia.

De forma semelhante, em função da polissemia que veiculam, as práticas corporais atestam a aproximação entre campos de conhecimento diferenciados (Lazzarotti Filho et al., 2010LAZZAROTTI FILHO, A. et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 11-29, 2010. DOI: 10.22456/1982-8918.9000
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). Provavelmente por isso, o verbete “práticas corporais”, tal qual registrado no dicionário crítico do campo da Educação Física, busca cobrir as mais diversas facetas de significação admitidas pela expressão (Silva; Lazzarotti Filho; Antunes, 2014SILVA, A. M.; LAZZAROTTI FILHO, A.; ANTUNES, P. C. Práticas corporais. In: GONZÁLES, F. J.; FENSTERSEIFER, P. E. (Org.). Dicionário crítico de Educação Física. 3. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 2014. p. 522-528.), em que pesem seus componentes biológicos, históricos, sociais e culturais, de maneira a extrapolar os fenômenos puramente orgânicos ou materiais.

Consoante essa riqueza semântica, poderíamos observar, nos documentos oficiais ligados à promoção da saúde no Brasil, a abrangência do termo “Práticas Corporais/Atividade Física” (PCAF). À vista disso, segundo o Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF, as PCAF foram inseridas no período histórico do processo em que foi construída a Política Nacional de Promoção da Saúde (BRASIL, 2009BRASIL. Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2009.). A princípio, as PCAF surgiram como um dos eixos temáticos da Política Nacional de Promoção da Saúde, ocasião em que foram elencadas algumas ações a seu respeito (BRASIL, 2006cBRASIL. Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Aprova a Política de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União: Brasília, DF , 30 mar. 2006c.). Todavia, é no Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF e nas Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio a Saúde da Família que se pode observar, de forma mais veemente, as concepções e os aspectos conceituais que a expressão suscita (BRASIL, 2009BRASIL. Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2009., 2010BRASIL. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2010.).

No que diz respeito ao trato com a saúde, faz-se necessária a compreensão de que o estado de saúde não depende somente de intervenções medicamentosas, execução de PCAF ou alimentação saudável. Ao extrapolar tal entendimento, surgem propostas embasadas na aplicação do princípio da equidade no sistema de saúde público, no exercício da cidadania, nos serviços básicos (como saneamento), bem como no enfrentamento de fatores adversos. Conjuntamente, garantias quanto ao acesso à territorialização, à cultura e ao emprego, entre outros, são ponderadas para que sejam realizados os devidos serviços e cuidados à saúde (BRASIL, 2006aBRASIL. Portaria nº 2528, de 19 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 19 out. 2006a.). Em suma, o tratamento à saúde não pode ser concebido ou amparado unicamente pelos princípios biológicos (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.), nem tampouco algo plenamente alcançado pelo modelo psicossocial (Merhy, 2006MERHY, E. E. (Org.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2006.), menos ainda de forma positiva ou negativa (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.). São características conspícuas da saúde sua abrangência, polissêmica e dinâmica, cuja finalidade não é outra senão a preservação e a melhoria da qualidade de vida.

Pelo exposto, o presente estudo objetiva investigar as concepções de corpo e de saúde relativas aos idosos inseridos no programa de PCAF intitulado Grupo Esporte e Lazer, que é coordenado por uma Unidade de Atenção Básica à Saúde da Família (UABSF) da região leste da capital goiana. Esse estudo se justifica pois grande parte dos idosos são acometidos por uma ou mais doenças crônicas e os cuidados à saúde são, na maioria dos casos, realizados através de tratamentos farmacológicos (WHO, 2018WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Plano de ação global para a atividade física 2018-2030: mais pessoas ativas para um mundo mais saudável, 2018.). No Brasil, esses agravos são responsáveis pelos maiores números de atendimentos no serviço público de atenção básica de saúde (BRASIL, 2009BRASIL. Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2009.). As Unidades Básicas de Saúde (UBS) brasileiras, através da formação de grupos, também ofertam outros meios de acolhimento aos idosos, que funcionam de forma a estender os atendimentos (BRASIL, 2006aBRASIL. Portaria nº 2528, de 19 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 19 out. 2006a.) e, até mesmo, contribuir com custos mais baixos para o sistema público (Mendes et al., 2017MENDES, A. et al. A contribuição do pensamento da saúde coletiva à economia política da saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 4, p. 841-860, 2017. DOI: 10.1590/S0104-12902017170748
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). Além disso, os cuidados decorrentes da permanência nos grupos mencionados alargam os benefícios à saúde, como mobilidade do idoso na sua comunidade, a melhora da autoestima (BRASIL, 2005BRASIL. Envelhecimento ativo: uma política de saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2005.), o aumento no nível de PCAF e da alimentação saudável (BRASIL, 2006bBRASIL. Atenção à Saúde da Pessoa Idosa e Envelhecimento. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2006b.; 2006cBRASIL. Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Aprova a Política de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União: Brasília, DF , 30 mar. 2006c.; WHO, 2018WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Plano de ação global para a atividade física 2018-2030: mais pessoas ativas para um mundo mais saudável, 2018.), o alcance dos níveis de atividade física recomendada para a faixa etária (WHO, 2018WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Plano de ação global para a atividade física 2018-2030: mais pessoas ativas para um mundo mais saudável, 2018.), dentre outros.

Metodologia

A investigação aconteceu no grupo Esporte e Lazer, que existe há mais de 12 anos e é vinculado a uma UABSF da região leste de Goiânia. Os profissionais que acompanham o grupo são três Agentes Comunitários de Saúde (ACS); um deles tem o papel de propor as PCAF ao passo que as demais agentes veiculam informativos enviados pela Secretaria de Saúde à unidade, dialogando diretamente com os idosos sobre tratamentos, cuidados, campanhas e atendimentos. Quanto aos participantes, são aproximadamente 30 idosos - pessoas acima de 60 anos (BRASIL, 2006bBRASIL. Atenção à Saúde da Pessoa Idosa e Envelhecimento. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2006b.) - que variam a cada encontro. O predomínio de mulheres é uma característica conspícua do grupo.

As atividades do grupo foram acompanhadas durante dois meses do ano de 2016. Durante os seis encontros, em que foram observadas as atividades do grupo Esporte e Lazer, geramos um diário de campo, seguindo a agenda de pesquisa tal qual proposta por Minayo (2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec , 2013.). Foram respeitados os procedimentos éticos de pesquisa com seres humanos. Todos os participantes permitiram a observação das atividades então desenvolvidas pelo grupo de pesquisadores, facilitada pelo fato de que uma das pesquisadoras mantivera prévio contato com os participantes, em razão de seus estágios curriculares do curso de Bacharelado em Educação Física cursado em uma universidade pública, bem como nas atividades, por ela exercidas, junto ao Programa de Reorientação de Formação Profissional em Saúde e Educação pelo Trabalho para a Saúde (PROPET-Saúde) da mesma instituição. Importa salientar que foi garantida a confidencialidade, a anonimidade e o sigilo para todos os participantes.

Além da observação participante, todos os idosos foram convidados para participar do grupo focal (GF), que se deu no último encontro. Nele se fizeram presentes cinco participantes (quatro mulheres e um homem), que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). O GF foi gravado e teve duração de 1 hora e 7 minutos. Seu início se deu com a explicação acerca desta estratégia de obtenção de informações em pesquisa, para em seguida realizá-lo propriamente. Após seu término, foi realizada a transcrição da gravação.

O diário de campo e a transcrição do GF foram submetidos à análise do conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Ed. 70, 2011.). O diário de campo foi trabalhado e apresentado nesse documento de forma a melhor cotejar os objetivos traçados, razão pela quais suas partes não se encontram transcritas de forma literal. Das quatorze questões consumadas no GF, foram selecionadas aquelas que se dedicavam ao debate sobre o corpo e a saúde. As respostas serão apresentadas em cinco blocos, três dos quais serão exclusivamente devotados à percepção e concepção do corpo e dois voltados ao entendimento que é feito acerca da saúde, sendo que um expressa as relações com as PCAF, e uma resposta final sobre envelhecimento. Para a apresentação dos idosos, foram atribuídos códigos relativos ao sexo e à idade, a saber: M (para mulher) e H (para homem), e referência numérica identifica a idade, ou seja, “M67” indica se tratar de mulher de 67 anos.

Análise e discussão

Por meio da anotação no diário de campo e das observações feitas, poderia se afirmar que antes do início de qualquer PCAF, os idosos aferiam a pressão arterial com os ACS. Após isso, todos se posicionavam em uma grande roda, em que os ACS informavam as atividades ligadas aos serviços de saúde da comunidade. Durante os encontros, eram frequentes orações, músicas e risos que partiam, principalmente, dos idosos. Além disso, de notar que os idosos não participam dos encontros apenas devido às PCAF, pois ali eles têm o prazer de reencontrar amigos(as) e se sentirem pertencentes à comunidade.

Por fim, diante das observações in loco, as falas dos idosos deixam entrever uma percepção reducionista da saúde e fragmentada do corpo, e assim surgiram inquietações acerca das questões ligadas a esses temas, levando-nos ao aprofundamento deles.

Para a análise das questões ligadas ao corpo, foram suscitadas algumas discussões segundo as quais o corpo deve ser pensado como algo total e de muitas faces (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.; Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.; Mauss, 2015MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 2015.; Silva, 2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.; Zoboli, 2012ZOBOLI, F. Cisão corpo/mente: espelhos e reflexos nas práxis da educação física. São Cristóvão: Editora UFS, 2012.). A análise ponderou se o corpo foi apresentado com base unicamente em fatores reducionistas (Silva, 2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.), nomeadamente orgânicos (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.) e biológicos (Mauss, 2015MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 2015.), que, em resumo, apontam para o que Le Breton (2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.) denominara “concepção anátomo fisiológica do corpo”. Apesar disso, foi observado se ao extrapolarem tais fatores, as pessoas iam ao encontro de outros elementos mais alinhados aos poderes emanados pelo corpo vivo (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.), bem como psicológicos e socioculturais (Bonnet, 2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.; Mauss, 2015MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 2015.), ou ainda sua história social e cultural (Zoboli, 2012ZOBOLI, F. Cisão corpo/mente: espelhos e reflexos nas práxis da educação física. São Cristóvão: Editora UFS, 2012.).

Assim, ao inquirir os idosos sobre como eles percebiam seus corpos, antes de iniciadas as PCAF no grupo, as seguintes respostas foram fornecidas: “eu sentia o corpo doendo […] um desânimo” (H67) “[…] tinha uma ‘molezona’, aquela coisa esquisita” (M71) ; “eu tinha aquela tristeza, só ficava dentro de casa” (M63).

Como se vê nas falas acima, predomina a ideia de um corpo que vivia cansado. A percepção das limitações enquanto um corpo sem disposição para viver é também uma assertiva defendida por Canguilhem (2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.), para quem o corpo compreende a limitante ideia de “[…] organismo vivo como uma máquina” (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005., p. 41), ou seja, uma visão anátomo-fisiológica em detrimento de um entendimento mais explicativo, segundo o qual contribui a passos pequenos com o entendimento de que o “[…] corpo humano vivo é o conjunto dos poderes de um existente tendo capacidade de avaliar e de se representar a si mesmo esses poderes, seus exercícios e seus limites” (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005., p. 41). Apesar das compreensões apresentadas serem embasadas pelo dualismo cartesiano corpo/mente (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.; Zoboli, 2012ZOBOLI, F. Cisão corpo/mente: espelhos e reflexos nas práxis da educação física. São Cristóvão: Editora UFS, 2012.), os processos avaliativos a respeito dos limites e possibilidades de representatividade em vida apresentam um avanço perante tal compreensão. Aqui, nas entrelinhas, temos um corpo vivo, pensante, atuante, que se movimenta, às vezes, ou sempre com limites, mas que tem condições de reconhecê-los.

A dor, esse fator limitante, é um fato da existência, mas que frequentemente é atrelada somente ao seu caráter fisiológico. É ela que conduz a pessoa em sofrimento a locais onde são realizadas condutas na área saúde, no entanto, “o significado conferido pelo indivíduo sofredor à provocação suportada é um critério determinante de sua relação com a dor […]” (Le Breton, 2013LE BRETON, D. Antropologia da dor. São Paulo: Unifesp, 2013., p. 141). O fato de o homem de 67 anos referenciar a dor no passado, aponta para mudanças na concepção a respeito do corpo que não consegue trazer à consciência e, portanto, não é capaz de verbalizar.

Constata-se a variação quanto ao engajamento social e aos espaços explorados na vida da mulher de 63 anos. A tristeza, como uma das emoções, embora muitas vezes atreladas à parte biológica do corpo (Rezende; Coelho, 2010REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.), foi exemplificada na fala, extrapolando tal entendimento. Adicionalmente, tais falas esboçam uma comparação do estado presente com o passado, que, além de apontar a concepção de Canguilhem (2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.), permitem vislumbrar a construção de novas significações atreladas ao corpo.

Ao prosseguir o GF, eles foram interpelados se, ao inserir no grupo de PCAF, tiveram alguma alteração em seus corpos. Seguem alguns relatos:

[…] eu tinha umas dores nesse braço […] e eu acordei e vi que era falta de atividade. (M71)

[…] eu sempre ficava internada […] e depois até o médico espantou “uai, já tem uns seis meses sem vim no hospital, o que você tá fazendo?” e eu disse que estou fazendo atividade física […]. (M77)

[…] coisa boa né, porque eu tinha problema de coluna né, tenho né, mas melhorou muito do que era […] era dor que não conseguia andar, eu andava torto. (H67)

Nesse bloco, apesar da pergunta se referir ao presente, todos retomam acontecimentos associados ao corpo. A mulher de 77 anos aponta internação, hospital e médico, fatores estes que, segundo Bonnet (2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.), comumente se encontram hegemonicamente referenciados pelo conhecimento biomédico ou biologista. Assim, certamente seu corpo também se encontrava, pelo menos mais que atualmente. A mulher de 61 anos e o homem de 67 anos se citam por partes, a saber: braço e coluna, respectivamente. É Descartes que autoriza a razão moderna e a ciência a fazer essa separação tão radical que aponta para um entendimento reducionista do corpo. Suas ideias são apropriadas pela biomedicina dando vazão ao modelo anátomo-fisiológico como sendo o hegemônico a respeito do corpo (Silva, 2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.). Logo, as falas dos idosos reiteram que a inserção no grupo de práticas corporais acarretou mudança na forma de movimentar o corpo, no qual foi atribuído um “corpo vivo” (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.). No entanto, essas pessoas se mantêm na perspectiva anátomo-fisiológica ao explorar seu passado.

Na comparação entre presente e passado, foi mencionado que as PCAF têm contribuído para agregar vida, ou ainda que são elas as responsáveis pela construção das novas significações, ambas concernentes ao corpo. Por conseguinte, a relação com a dor e a interação com o médico evidenciam transformações na concepção de corpo que se dão pelo movimento, sendo que a capacidade de os ampliar é muito importante para essa faixa etária.

A movimentação se faz importante porque nas sociedades ocidentais modernas os sujeitos não se dão conta de que, a partir de seu nascimento, eles envelhecem a cada minuto, de forma que sua imagem corporal se encontra sempre em transformação, traduzindo socialmente aquilo que os sujeitos são fisicamente aptos a realizar (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.). A sociedade espera que a mobilidade desses sujeitos diminua, ao passo que a total imobilidade também não é bem vista (Le Breton, 2013LE BRETON, D. Antropologia da dor. São Paulo: Unifesp, 2013.). Dessa maneira, ao relatar a respeito da mobilidade, eles apontam que um juízo social a respeito da sua idade foi incorporado.

A esse respeito, Zoboli (2012ZOBOLI, F. Cisão corpo/mente: espelhos e reflexos nas práxis da educação física. São Cristóvão: Editora UFS, 2012., p. 32) aponta:

As diversas maneiras que o ser humano tem de se relacionar com a sociedade, com o mundo e a natureza, ocorrem das mais variadas formas de acordo com a cultura em que está inserido. Essas maneiras de interação não são permanentes, pois sofrem a influência da ação dos homens sobre a natureza, portanto, são constantemente (re)construídas, e, em decorrência disso, passam por mudanças, frutos do processo histórico desta (re)construção humana. Sendo assim, o humano, além de revelar sua singularidade pessoal, também possui características que o definem como membro de um grupo social em um determinado tempo.

Infere-se, portanto, que o corpo é inerente à condição humana, nas relações que constroem no mundo, com as pessoas, a cultura e a natureza. Para compreendê-lo, faz-se necessário entender, sem julgamentos valorativos, a cultura de um determinado povo social e historicamente determinada. A condição humana emana aspectos singulares e grupais, sendo que é construída pela relação que o sujeito estabelece para si em determinadas situações ou grupos (Zoboli, 2012ZOBOLI, F. Cisão corpo/mente: espelhos e reflexos nas práxis da educação física. São Cristóvão: Editora UFS, 2012.).

Dito isto, as últimas falas referentes ao corpo objetivaram responder a indagação a respeito do entendimento que dele faziam. Os retornos foram os seguintes:

[…] é poder tomar os remédios, é tá de dieta, porque eu tenho diabetes, […] tenho colesterol, tenho que tomar remédio, para meu corpo seguir em frente. (M63)

[…] meu corpo pra mim tá em dia, bem forte, alimentar bem e fazer sempre o exercício, […] como uma comidinha mais ou menos e meu corpo vai perfeito. (M67)

[…] corpo físico da gente […] o corpo da gente é uma coisa boa, porque Deus dando vida pra gente andar, pular, gritar. (M71)

[…] uai, o corpo é importante, o corpo tem que tá normal. (H67)

Alguns trechos do bloco acima se relacionam ao que foi apresentado por Silva (2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.) e Canguilhem (2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.). M63, ao citar seus problemas com o colesterol e com a insulina, bem como M71, ao reduzir o corpo à parte física, fazem referência ao que Silva (2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.) denominara “corpo cartesiano”, que é reduzido a suas partes internas e a seu aspecto físico. A centralidade das falas, notadas antes por Canguilhem (2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.), recaem sobre o funcionamento da organicidade, com o objetivo explícito ou não de fazer com que a vida continue acontecendo. H67 se apresenta plenamente imerso nessa compreensão hegemônica quase sem palavras ou argumentos; M71 aponta alguns fatores relativos às PCAF ligados a sua concepção religiosa; M63 aprofunda nas suas questões cotidianas relativas à alimentação demonstrando que incorporou o discurso hegemônico; nesse mesmo sentido, M67, que é a mais explícita ao apontar fatores relativos à alimentação e à PCAF que compõem seu cotidiano, também apresenta uma incorporação do discurso que defende a supremacia do biológico. É notório que o uso das palavras distintas aponta uma única direção: a predominância da compreensão hegemônica e moderna de corpo apontando a supremacia do biológico (Silva, 2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.).

A questão religiosa é um apontamento que se afasta da biomedicina e se consubstancia no campo da psicologia, traçando relações profundas com a sociedade (Bonnet, 2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.), de maneira que é reiterada a ideia de fato social total elaborada por Mauss (2015MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 2015.), que dá a igual importância aos elementos biológicos, psicológicos e socioculturais para a análise dos fatos.

Após realizar o percurso pelos três blocos, construir uma afirmação rápida a respeito da concepção de corpo dos idosos é se lançar a uma definição simplória. É constatado que “[…] cada ator ‘bricola’ a representação que faz do seu próprio corpo, de maneira individual, autônoma, mesmo se retira, para tanto, no ar do tempo, o saber vulgarizado das mídias, ou a casualidade de suas leituras e de seus encontros pessoais” (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 21). A colocação mais acertada seria a de que a concepção deste grupo em relação ao corpo é híbrida ou sincrética.

Dois fatos opostos perfazem essa constatação: (1) o conhecimento hegemonicamente veiculado pela modernidade (Bonnet, 2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.; Silva, 2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.); e (2) a proposta das UABSF (BRASIL, 2009BRASIL. Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2009.; Bonnet, 2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.). Conforme anunciado, a modernidade reduziu a maneira de abordar o corpo (Silva, 2001SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados; Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.). Por outro lado, Bonnet (2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.) defende que a proposta da medicina da família se volta ao equilíbrio biopsicossocial em sua prática cotidiana, pautada na interação dos saberes. Os grupos e as PCAF desenvolvidas em UABSF, segundo Tonosaki (2016TONOSAKI, L. M. D. Programa Vida Ativa Melhorando A Saúde (VAMOS): percepção dos participantes quanto à saúde, barreiras e facilitadores. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.), oferecem elementos aos idosos que os tornam mais autônomos, de forma a torná-los corresponsáveis pelo cuidado com sua saúde, proporcionando a eles o sentimento de pertencimento a uma proposta grupal, desencadeando a valorização da vida. Ademais, promovem profícuos momentos de bem-estar amplificadores das relações sociais, históricas e culturais no contato uns com os outros e com o sistema de saúde (BRASIL, 2009BRASIL. Caderno de Atenção Básica: diretrizes do NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2009.). Estes dois tipos de elementos se relacionariam dando vazão ao que Bonnet (2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014., p. 170) nomeia de “sincretismo hierárquico”, de maneira que a relação entre esses elementos depende da situação e do contexto a ele vinculados.

Adentrando nas discussões a respeito da saúde, serão pontuadas quatro linhas presentes na literatura. A primeira se refere à ausência de doença (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.), compreendida como um conceito simplista e reducionista. Em segunda instância, a referência à saúde como um completo bem-estar biopsicossocial (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.; Merhy, 2006MERHY, E. E. (Org.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2006.). A terceira é a que as políticas públicas brasileiras se embasam, a saúde ampliada, definida como “[…] a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviço de saúde” (Brasil, 1986BRASIL. Relatório Final da 8ª conferência Nacional de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1986., p. 4). Por fim, a saúde positiva, que é uma forma de visualizar o estado que o sujeito se encontra no momento, em que o sujeito tem a capacidade de realizar atividades, consegue traçar objetivos com as suas ações e intervir de forma autônoma e independente no ambiente (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.). Tais delineamentos foram balizadores para a análise realizada acerca da saúde.

No GF, em um segundo momento, adentrou-se na discussão direcionada à saúde. Inicialmente, foi perguntado o que seria saúde, os retornos obtidos foram:

[…] a saúde pra mim é muito especial, porque tendo saúde, você consegue fazer tudo dentro de casa. (M67)

[…] a saúde é uma coisa importante, porque a gente precisa fazer qualquer coisa né, aquela faxina. (M71)

[…] saúde é boa coisa pra quem tem. Agora quando não tem é problema, tem vontade de fazer as coisas, fazer as coisas. (M77)

Uai, a saúde é uma coisa muito importante, porque a saúde que nos ajuda a trabalhar, ajuda a gente como diz o outro […] alegria, a gente tem alegria porque tem saúde. (H67)

Todas as falas assinalam o entendimento de uma saúde positiva (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.), visto que essa compreensão atenta para as maneiras de visualizar o estado em que o sujeito se encontra no momento, atendo-se à capacidade que os idosos possuem de realizar atividades, alcançar objetivos através de suas ações e intervir de forma autônoma em seu ambiente (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.).

As falas dos idosos priorizam a autonomia e independência, assim como a saúde positiva (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.), pelo fato de anunciar comemorações perante ações como o fazer ou trabalhar, ou seja, ações rotineiras que são realizadas com qualidade, segurança e prazer. Além do mais, na discussão a respeito das concepções de corpo, os idosos mencionaram que a partir das PCAF, oferecidas pela UABSF, suas dores amenizaram, proporcionando um aumento da disposição para as atividades cotidianas, dialogando também com uma concepção de saúde positiva.

O elemento alegria é um fator de sentimento que permite o contato com o outro. Ele permite a criação de vínculos e de amizades, favorece ações cotidianas, fazendo com que eles se reconheçam no tempo e espaço, no sentido de pertencimento (Tonosaki, 2016TONOSAKI, L. M. D. Programa Vida Ativa Melhorando A Saúde (VAMOS): percepção dos participantes quanto à saúde, barreiras e facilitadores. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.). É um elemento de sociabilidade contido no indivíduo, que nem sempre encontra sua identificação em um outro, mas que muitas vezes basta em si mesmo (Rezende; Coelho, 2010REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.), que se torna primordial para a continuidade de tratamentos ou até mesmo de continuarem em espaços que promovem cuidados à saúde, como que acontece com o grupo Esporte e Lazer (Benedetti, 2012BENEDETTI, T. R. B. et al. Programa “VAMOS” (Vida Ativa Melhorando a Saúde): da concepção aos primeiros resultados. Revista Brasileira de Cineantropometria e Desempenho Humano, Florianópolis, v. 14, n. 6, p. 723-737, 2012. DOI: 10.1590/1980-0037.2012v14n6p723
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; Tonosaki, 2016TONOSAKI, L. M. D. Programa Vida Ativa Melhorando A Saúde (VAMOS): percepção dos participantes quanto à saúde, barreiras e facilitadores. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.).

Ao continuar com os questionamentos, eles foram inquiridos se as PCAF interferiam na condição de saúde deles, e eles responderam:

[…] eu não sinto tonteira, eu sinto muito bem […]. Me sinto tão bem quando faço minha física. (M63)

Ah, esse negócio da atividade pela saúde, tenho problema de diabetes, tenho problema de pressão. (M67)

[…] muitas coisas né, […], o médico mandou usar só um remedinho. (M71)

[…] eu ando, eu converso, tem quem gosta de ficar parada, mas eu não! Aí eu tomo muito remédio. (M77)

[…] interferiu muita coisa né, interferiu que me dar mais vontade de trabalhar, eu me sinto feliz por estar junto ao grupo […]. Agora é importante a atividade física, porque se nós não faz, nós já estava só sentado […] pensando na vida, e ai? E do jeito que a gente tá, […], nós tá em forma né! (H67)

A ideia de obter saúde através de medicamentos, evidenciado por M67, M71 e M77, remete a uma relação clara de saúde-doença. Especificamente, a doença que é combatida pela ingestão de pílulas, de forma que a medicalização se torna um elemento fundamental entre os idosos, como um meio de apurar a saúde (Mira, 2003MIRA, C. M. Exercício físico e saúde: da crítica prudente. In: BAGRICHEVSKY, M.; PALMA, A.; ESTEVÃO, A. (Org.). A saúde em debate na educação física. Blumenau: Edibes, 2003. v. 1. p. 169-191.). Por outro lado, há o esboço da compreensão que existem outras formas de amenizar, tratar, proteger e maximizar a saúde, e consequentemente minimizar os danos e agravos de doenças (Mendes, 2012MENDES, E. V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da Estratégia da Saúde da Família. Brasília, DF: Organização Pan-Americana de Saúde, 2012.). Estudos apontam que a atividade física tem tornado um elemento importante no combate e no tratamento (Lee et al., 2012LEE, I. M. et al. Effect of physical inactivity on major non-communicable diseases worldwide: an analysis of burden of disease and life expectancy. The Lancet, Amsterdam, v. 380, p. 219-229, 2012. DOI: 10.1016/S0140-6736(12)61031-9
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), e as falas de M63, M67 e H67 constatam que a inserção no grupo de PCAF tem amenizado os danos das doenças.

Nesse segundo bloco de discussão sobre saúde, somente M67 não expõe com clareza o que pensa acerca da saúde, porém, infere-se, de sua fala, elementos que compõem a concepção positivista de saúde (Farinatti; Ferreira, 2006FARINATTI, P. T. V.; FERREIRA, M. S. Saúde, promoção da saúde e educação física: conceitos, princípios e aplicações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.); por outro lado, M71 é abrangente; M77 apresenta seu gosto por andar; M63 relata ganhos nas entrelinhas apresentando claramente seu sentimento. Assim, entende-se que os idosos estão na busca da integralidade da saúde em suas vidas, mesmo não tendo o conhecimento de fato sobre a saúde ampliada, tal qual regida pelos documentos nacionais deste campo (Bonnet, 2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.; Brasil, 1986BRASIL. Relatório Final da 8ª conferência Nacional de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1986.; Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.).

Tanto M77 quanto H67 apontam a interação social como um componente da saúde, contudo, a fala de H67 faz notar que os efeitos das práticas corporais estão também relacionados às questões sociais e psicológicas, fato que dialoga com o que é estabelecido nos documentos oficiais. Tal compreensão esboça uma tentativa de diálogo com o discurso de saúde ampliada (BRASIL, 1986BRASIL. Relatório Final da 8ª conferência Nacional de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1986.), haja vista a possibilidade de alteração nas condições de vida das pessoas em relação a aspectos pessoais e sociais.

A concepção de saúde ampliada foi definida na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, como já foi mencionado anteriormente (BRASIL, 1986BRASIL. Relatório Final da 8ª conferência Nacional de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1986., p. 4). Observa-se que esse conceito, ao fazer um movimento de saída do reducionismo biológico, busca abranger o máximo de quesitos e necessidades relativas a indivíduos, mas que se encontram evidenciadas na comunidade em geral.

A fala da mulher de 67 anos teve que ser construída por algum lugar. Nas observações, o trabalho com as PCAF frequentemente recaía sobre elementos ou movimentos específicos desses saberes. No entanto, aos poucos desencadeavam em outras ações como sorrir, levar um novo amigo ao grupo, trazer demandas da comunidade aos encontros e levar o que foi feito na UABSF para casa ou para o vizinho (Diário de campo, 27/11/2015). Estas ações, ainda que de apenas um dos membros do grupo, demonstram como estas atividades podem surtir seus efeitos.

Na consulta às Diretrizes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (BRASIL, 2010BRASIL. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2010., p. 117), tem-se que:

[…] as Práticas Corporais (PC) são práticas que estimulam a interação mente-corpo, proporcionam aos participantes maior consciência da sua integralidade enquanto ser humano, levando à melhoria da qualidade de saúde e de vida, atuando na promoção à saúde, prevenção e auxílio no tratamento de doenças e contribuindo também para a humanização dos serviços de saúde.

Pelo exposto, por mais que os idosos tenham utilizado termos como “atividade física” em suas falas, através da observação e das práticas corporais, pode-se notar a alegria dos idosos, os vínculos construídos através das trocas e do compartilhamento de si, a preocupação e o cuidado estabelecido com o próximo e com sua comunidade (Diário de campo, 27/11/2015). Assim, pode-se afirmar que foram firmadas interferências das PCAF no seu cotidiano, de forma a compreendê-las como um fenômeno possuidor de múltiplas dimensões, a saber, sociais, biológicas, culturais e psicológicos (Mira, 2003MIRA, C. M. Exercício físico e saúde: da crítica prudente. In: BAGRICHEVSKY, M.; PALMA, A.; ESTEVÃO, A. (Org.). A saúde em debate na educação física. Blumenau: Edibes, 2003. v. 1. p. 169-191.).

Por fim, o grupo focal foi encerrado pedindo para que completassem a seguinte frase: “Envelhecer é…”. Resumidamente, todos disseram que é algo normal, comum ou que é o processo da vida. Entre elas, a fala de M71 apresenta mais elementos do processo:

[…] é comum, é o caminho de todos. Nós nasceu (sic*), vai sendo criança, depois adolescente, e a idade vai chegando, e a velhice e aí a gente vai conformando porque foi Deus, porque não é só que vai fica velha, nós todos, mas velho é mundo, porque a gente vai e ele fica, não é verdade? Mas graças a Deus […] que nós tá na idade que estamos […] eu quero chegar aos 100 (anos).

Para grande parcela da população ocidental a velhice é indesejada. O fato de não a conceber como um fator natural, que segue seu caminho temporal desde o momento do nascimento é o ponto chave da problemática (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.). De notar que todos os idosos desenvolveram uma relação integral referente a esse processo, estabelecendo um equilíbrio entre os fatores biológicos, psicológicos e socioculturais atrelados ao corpo e à saúde.

Especificamente a fala da mulher de 71 anos aponta dois aspectos importantes. Primeiro, o aspecto negativo da velhice se encontra no contexto, seja ele social, cultural ou relacional (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.). Em segunda instância, ele é um sentimento (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.). Assim, a velhice não pode ser definida simplesmente por aspectos físicos, pela idade ou a saúde, muito menos por outras pessoas, a não ser aquelas que se reconheçam como velhas.

Conclusão

Este artigo se propôs a investigar as concepções de corpo e de saúde entre os idosos inseridos nas práticas corporais realizadas pelo sistema público de saúde de Goiânia-GO. Nota-se que cada idoso maneja, a seu modo, as definições de corpo e de saúde a fim de esboçar, como fala para a pesquisa, muitas vezes composições híbridas. Os arranjos fornecidos frequentemente apresentam clareza quanto à hierarquia entre os conteúdos contidos na mesma fala, que foram possíveis de ser percebidos pela definição de sincretismo hierárquico de Bonnet (2014BONNET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina da família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.).

Quanto ao corpo, claramente predomina a percepção de corpo vivo nos termos de Canguilhem (2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forense Universitária, 2005.), que é muito criticada por Le Breton (2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.) por conta de sua concepção de fundo biológico e essa relação pode vir a enganar possíveis desapercebidos. Os fatores percebidos aqui foram: identificar os limites e relatar o funcionamento do organismo. Em segunda instância, são apontados elementos que levam a refletir sobre o corpo na sua condição anátomo-fisiológica, os fatores aparecem em dois tempos: (1) no passado: cansaço, tristeza, dor, internação, braço e coluna; (2) no presente: movimentar o corpo, colesterol e insulina. A relação evidenciada entre o passado e o presente demonstra que as PCAF desenvolvidas na UABSF corroboram para ampliar concepção de corpo dos idosos, assim como os relatos sobre envelhecimento realizados ao final. Os idosos concebem o corpo de forma sincrética, não só referenciado por saberes biomédicos, no entanto, os elementos que ficam claros nessa relação são: a busca pelo movimento numa tentativa de ruptura com o que a sociedade estabelece e a fé.

Observa que o elemento alegria esteve presente em todos os encontros. Pode-se ponderar no texto o fato de estarem juntos com outros idosos faz com que eles se reconheçam dentro do espaço e tempo, além fortalecer uma rede de apoio entre eles(as), que é fundamental para reforçar a saúde. Assim, verifica que no grupo, a concepção de saúde seja voltada para a saúde positiva, por mais que citem elementos da saúde ampliada, mas isso não faz parte do discurso deles(as) de forma clara. Também por meio de medicamentos que fazem parte do processo de não adoecerem, estão diariamente interligados com a saúde, com a dose e a reposta para não ficarem debilitados para as suas atividades domésticas e/ou comunitárias, mantendo-se ativos e com autonomia.

É necessário pontuar que a ideia de sincretismo hierárquico permite apontar que a expressão a respeito da saúde integral ou de uma concepção ampliada de corpo pode não vir no topo do discurso a todo momento. Tal ordenamento de saberes em um discurso ou em uma atuação vai depender de um conjunto de fatores, como o contexto ou as palavras usadas por outros integrantes.

Ainda assim, acredita-se que é necessário realizar experiências diferenciadas, que permitam uma reflexão aprofundada sobre corpo e a saúde de uma forma integral, consumadas durante a prática e não somente antes ou após. Nesse sentido, também é necessário que as práticas corporais continuem sendo ofertadas em espaços públicos de forma gratuita e com qualidade, para os idosos e a comunidade em geral. Dessa forma, as PCAF poderão exercer a promoção, proteção e cuidado à saúde como benefícios primários, além do provento da socialização que interfere diretamente na saúde das pessoas. Por fim, faz-se necessário que os profissionais dedicados a tais práticas se interessem em identificar as concepções dos praticantes a fim de desenvolver seu trabalho, amparados também em dinâmicas e reflexões.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2021
  • Revisado
    05 Out 2021
  • Aceito
    15 Jan 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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