Resumo
Este artigo foi construído junto a mulheres de uma comunidade quilombola situada na região metropolitana de Fortaleza (CE), a partir da investigação sobre lugares de cuidado em saúde. Destacamos a importância de debater a dimensão afetiva das práticas de saúde com base nos cotidianos das comunidades, considerando questões sociopolíticas como o debate étnico-racial. Nosso objetivo foi reconhecer concepções de saúde e demandas trazidas pelas participantes e, a partir disso, discutir modos de fazer saúde. Foi utilizado o Instrumento Gerador dos Mapas Afetivos para captar questões relacionadas ao cuidado advindas dos afetos. Contamos com 13 participantes, mulheres com idades entre 38 e 77 anos, e, baseadas em suas respostas, categorizamos quatro lugares: igrejas evangélicas, casa, espaços de convivência comunitária e centros comerciais. Outros espaços foram citados secundariamente e tiveram maior variabilidade. Percebemos a relevância que a coletividade, o acesso, o território e os afetos têm na construção dos processos de saúde das participantes. Por fim, discutimos os modos de fazer cuidado institucionalizados nos serviços de saúde e apontamos questões para a construção de processos mais dialógicos e pautados na autonomia.
Palavras-chave:
Cuidado em Saúde; Quilombolas; Questões Étnico-Raciais; Afetividade
Introdução
A discussão sobre saúde da população quilombola como temática de relevância social e foco de políticas públicas tem sido pautada por movimentos sociais que debatem questões étnico-raciais no contexto brasileiro. Ações governamentais direcionadas a melhorias de condições de vida dessas populações têm sido insuficientes diante dos ataques e da precariedade a que são submetidas. No que se refere ao Ministério da Saúde, é a partir da Portaria n.º 1.434, de 14 de Julho de 2004, que se direcionam recursos para financiar a ampliação das equipes de estratégia da saúde para as comunidades quilombolas (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.434/GM de 14 de julho de 2004. Define mudanças no financiamento da atenção básica em saúde no âmbito da estratégia Saúde da Família, e dá outras providências. Brasília, DF, 2004.).
Diversos estudos apontam condições de vida precárias, falta de acesso aos serviços de saúde, escassez de políticas públicas e de profissionais preparados para lidar com suas especificidades e o racismo como questões que afetam diretamente a saúde da população quilombola. Assim, evidenciam os efeitos da desigualdade social nos processos saúde-doença (Batista; Rocha, 2020BATISTA, E. C.; ROCHA, K. B. Saúde mental em comunidades quilombolas do Brasil: uma revisão sistemática da literatura. Interações, Campo Grande, v. 21, n. 1, p. 35-50, 2020. DOI: 10.20435/inter.v21i1.2149
https://doi.org/10.20435/inter.v21i1.214... ; Fernandes; Santos, 2016FERNANDES, S. L.; SANTOS, A. O. Itinerários Terapêuticos de mulheres quilombolas do Agreste Alagoano, Brasil. Interfaces, Florianópolis, v. 16 n. 2, p. 127-143, 2016.; Freitas et al., 2011FREITAS, D. A. et al. Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. Revista CEFAC, Campinas, v. 13, n. 5, p. 937-943, 2011. DOI: 10.1590/S1516-18462011005000033
https://doi.org/10.1590/S1516-1846201100... ).
Além disso, há resistência em realizar esse debate em variados setores sociais, o que gera escassez na produção científica sobre a temática. Freitas et al. (2011FREITAS, D. A. et al. Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. Revista CEFAC, Campinas, v. 13, n. 5, p. 937-943, 2011. DOI: 10.1590/S1516-18462011005000033
https://doi.org/10.1590/S1516-1846201100... ) em estudo sobre a literatura produzida acerca do tema saúde da população quilombola no Brasil, destacam que este assunto é recente nos debates da área e que muitos avanços ainda são requeridos, haja vista as desigualdades e iniquidades em saúde vivenciadas por esta população.
Neste estudo, buscamos contribuir com a produção científica sobre a saúde da população quilombola, partindo de uma compreensão ampla de saúde. Com este fim, focamos na ética do cuidado a partir da afetividade e da vinculação com o território. Ressaltamos, também, o compromisso ético-político presente no fundamento da construção do Sistema Único de Saúde (SUS) ao pautar saúde como um direito de todos e um dever do Estado.
Este trabalho foi produzido a partir da construção de ações em saúde junto a uma comunidade quilombola do município de Caucaia, situado na região metropolitana de Fortaleza, no Ceará. A aproximação com a comunidade se deu mediante o processo de territorialização em saúde, no qual se envolveram vários profissionais de saúde, de categorias diversas, que faziam parte de um programa de residência. Dessa forma, estabelecemos diálogo com lideranças comunitárias e pensamos na realização de atividades grupais junto à associação de idosos do território. Vale ressaltar que a associação era predominantemente composta por mulheres idosas, apesar de ser aberta a participação de qualquer membro da comunidade. Durante os encontros, conhecemos parte da história da fundação da comunidade, ouvimos sobre as lutas por direitos, acesso à saúde e à cultura, inserindo-se nesse debate questões étnico-raciais. É preciso destacar, outrossim, a presença, na comunidade, da população indígena da etnia Tapeba, o que era trazido explicitamente nas falas das participantes do grupo e algumas, inclusive, se identificavam como indígenas e quilombolas.
Passamos 14 meses com o grupo de mulheres realizando encontros quinzenais. Esse período favoreceu a criação de vínculos afetivos com as pessoas da comunidade, o que demarcou a construção da proposta da pesquisa que buscou mapear os espaços que são relacionados pelas participantes a suas vivências em saúde a partir da construção de mapas afetivos (Bomfim, 2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.). Sintetizamos a categoria lugar de cuidado em saúde como elemento estruturante do estudo, a fim de articular território e afetividade.
Lugar de cuidado em saúde
A categoria “lugar de cuidado em saúde” se fundamentou em estudos que trazem o cuidado como elemento ordenador dos serviços de saúde, associando-o ao conceito de integralidade. Ademais, utilizamos estudos da psicologia ambiental e do urbanismo para pensar a noção de lugar.
Schneider (2015SCHNEIDER, L. C. Lugar e não lugar: espaços da complexidade. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 17, n. 1, p. 65-74, 2015. DOI: 10.17058/agora.v17i1.5311
https://doi.org/10.17058/agora.v17i1.531... ) traz diversas vertentes da geografia para discutir o conceito de lugar. Segundo o autor, na geografia fenomenológica, o lugar não se referiria apenas a um espaço materialmente localizável, mas à significação deste a partir da experiência humana. Essa perspectiva trabalha com os conceitos de pertencimento e de identidade para compreender o lugar relacionado aos sentidos que o envolvem.
O autor menciona, também, a geografia humanística ao citar Yi-Fu Tuan e sua diferenciação entre espaço e lugar. Para este, lugar seria o espaço dotado de simbolismos. Ou seja, um lugar constrói-se como tal para uma pessoa ou coletivo a partir da vinculação. Sá (2014SÁ, T. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 209-229, 2014. DOI: 10.1590/S0103-20702014000200012
https://doi.org/10.1590/S0103-2070201400... ) discute as concepções de lugar e não lugar em Marc Augé e destaca que para o autor “lugar antropológico está carregado de sentido social” (p. 215). É o espaço perpassado pelas memórias e liga-se ao tempo passado, é fruto de processos de apropriação, de vinculação e de identificação. É de acordo com essas concepções que pensamos lugar, como espaço de vida e de afetos.
Por conseguinte, cuidado é uma categoria que tem ganhado relevância nas discussões sobre processos de trabalho e serviços de saúde. Fazemos referência a uma concepção de cuidado que se distancia do modelo biomédico, centrado no procedimento e no qual o sujeito é visto apenas como objeto de intervenção. Carnut (2017CARNUT, L. Cuidado, Integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1177-1186, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711515
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115... ) diferencia intervenção e cuidado, afirmando que o primeiro termo diz de uma interação com o usuário do serviço de saúde que não considera aspectos subjetivos, já o segundo traz a dimensão do sujeito em sua integralidade no processo saúde-doença.
Nessa proposta de pensar a relação entre profissional e sujeito do cuidado entram em cena o vínculo e os afetos. Afetar-se pelo outro do cuidado é imergir em seu território, em suas experiências em busca da construção de um cuidado contextualizado produzido a partir do diálogo.
O cuidado é tecido na relação interpessoal, deve facilitar processos de autoconhecimento e autonomia. Carnut (2017CARNUT, L. Cuidado, Integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1177-1186, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711515
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115... ) afirma: “Hermeneuticamente falando, o ‘cuidador’ e o ‘cuidado’ não são símbolos de interações quaisquer, mas sim de uma interação especial, na qual o ‘afetar-se’ consolida-se no ‘querem bem’ ao outro” (Carnut, 2017CARNUT, L. Cuidado, Integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1177-1186, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711515
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115... , p. 1178). O autor ressalta ainda que o ‘querer o bem’ ao outro não diz respeito à postura paternalista, mas fala de experienciar o mundo do outro a partir de seu lugar, buscando aproximar-se de sua cosmovisão.
É importante pontuar que a saúde, tida como algo sobre a qual apenas o profissional-cuidador deteria conhecimento e meios para restabelecer, traz consigo efeitos de dominação. Nessa perspectiva, Contatore et al. (2017CONTATORE, O. A., MALFITANO, A. P. S., BARROS, N.F. Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia. Interface, Botucatu, v. 21, n. 62, p. 553-63, 2017. DOI: 10.1590/1807-57622016.0616
https://doi.org/10.1590/1807-57622016.06... ) citam as ideias de Illich em A expropriação da saúde: nêmeses da medicina, obra em que é discutido o efeito que a linguagem especializada produz na relação médico-paciente, gerando maior assimetria no contato e relegando ao profissional o monopólio dos conhecimentos em saúde.
Os referidos autores situam, a partir de Foucault e Canguilhem, a construção e o uso do conceito de doença para destinar ao “paciente” um lugar passivo. Assim, a doença passa a ser a verdadeira razão de ser das intervenções, ao passo que o sujeito é negligenciado. Pauta-se, nesta conjuntura, a normalidade como referencial de saúde, sendo esta, ao mesmo tempo, objetivo e construto fundante dos saberes médicos da época.
Para a efetivação de uma outra forma de cuidado em saúde é necessário romper com essas tradições e localizar saúde a partir da significação trazida pelo sujeito. Transpor o discurso biomédico significa também afirmar a clínica do singular em detrimento ao foco na doença e em padrões normativos. Trata-se do debate sobre a ética do cuidado.
Carnut (2017CARNUT, L. Cuidado, Integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1177-1186, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711515
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115... ) remete ao conceito foucaultiano de “cuidado de si” ao pautar uma ética do cuidado que se lança na liberdade e na autonomia, pensando quem recebe o cuidado como “produtor de bem-estar, em função dos desejos que o conduzem nas suas experiências de vida” (p. 1179). O cuidado deve, então, ser agenciador de processos criativos e de autonomia.
Assim, a categoria “lugar de cuidado em saúde” parte dessa perspectiva singular que diz do afeto e do desejo. As categorias lugar e cuidado convergem nesse estudo a partir do conceito de afetividade, sobre o qual trataremos mais detalhadamente.
Afetividade, território e saúde
Para discutir afetividade e cuidado, partiremos das discussões suscitadas por Franco e Galavote (2010FRANCO, T. B; GALAVOTE, H. S. Em Busca da Clínica dos Afetos. In: FRANCO, T. B; RAMOS, V. C. Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.) no texto Em busca de uma clínica dos afetos. Neste escrito, os autores tratam das concepções de corpo e afetividade em Espinosa. As noções espinosianas de afetividade e de bons encontros também são utilizadas por Bomfim (2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.) na elaboração dos mapas afetivos.
Bomfim (2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.), na construção do Intrumento Gerador dos Mapas Afetivos (IGMA), traz o debate sobre afetividade a partir de contribuições de Bader Sawaia. As autoras utilizam a noção espinosiana de afetividade a partir da ética e propõem que pensemos a realidade por vias que desestabilizem as cisões cartesianas. Bomfim (2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.) expressa que “pesquisar as paixões é uma forma de buscar as possibilidades reais dos homens e, consequentemente, de sua emancipação. Libertar-se das amarras de uma racionalidade instrumental seria o grande objetivo da terapêutica das emoções” (p. 64).
A validação do conhecimento e da organização social a partir da primazia da razão instrumental se consolida em nosso modo de existir. Espinosa é racionalista, porém pensa uma razão não dissociada dos afetos, o corpo não apartado da mente, o sentir não desconectado ao conhecer. Para Espinosa a afetividade é ética e diz do movimento do sujeito em direção a si e ao outro. As paixões devem possibilitar busca pela liberdade (Bomfim, 2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.).
Espinosa propõe-se a pensar formas de estar no mundo que impulsionam o humano à ação. As experiências afetivas seriam entendidas, então, como potencializadoras ou despotencializadoras. Assim, existem afetos que compõem as paixões tristes, que podem paralisar, despotencializar o ser. Em oposição a isto, o autor fala sobre bons encontros.Bomfim (2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.) destaca que “os bons encontros são aqueles que permitem a composição dos indivíduos com outros (afecção de corpos) que geram potência de ação” (p. 63).
Para Espinosa (2010ESPINOSA, Baruch. Ética. Edição Bilíngue Latim-Português. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.), um corpo afetado a partir de bons encontros tende à ação e à busca por autonomia. Para ele, o corpo é principalmente relacional, sendo portanto construído nos encontros, nas trocas, em sua ação no mundo.
Ao longo da história, a concepção hegemônica de práticas de saúde afasta-se das práticas de cuidado coletivo, do saber popular e da produção de autonomia. A partir do século XVIII, iniciam-se estudos que buscam localizar no corpo a causa das enfermidades. A medicina se apropria do saber que antes era coletivamente compartilhado e o torna menos acessível e mais distante da população não letrada (Franco; Galavote, 2010FRANCO, T. B; GALAVOTE, H. S. Em Busca da Clínica dos Afetos. In: FRANCO, T. B; RAMOS, V. C. Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.).
Conforme Franco e Galavote (2010FRANCO, T. B; GALAVOTE, H. S. Em Busca da Clínica dos Afetos. In: FRANCO, T. B; RAMOS, V. C. Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.), “Quem vê o corpo reduzido à geografia dos órgãos é incapaz de perceber a complexidade deste mesmo corpo em produzir a si mesmo, como vida ou morte” (p. 14). Para os autores, esses processos implicam na produção do mundo e da coletividade em suas várias possibilidades de recriação ou de paralisia e de morte. Destacamos neste estudo a importância da construção de um lugar para o sensível, para a escuta dos afetos na relação entre profissional de saúde e usuário, ampliando e ressignificando as possibilidades de ações em saúde.
É necessário pautar um cuidado que vise autonomia, liberdade e respeite a história e as particularidades de coletivos e indivíduos. Para tanto, demarcamos o cuidado em seu aspecto político, que visaria não apenas sanar iniquidades em saúde, mas pautar uma proposta coletiva emancipatória.
Metodologia
Optamos pela utilização do Instrumento Gerador dos Mapas Afetivos (IGMA) idealizado por Bomfim (2010BOMFIM, Z. A. C. Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.) em sua tese de doutorado, que busca trazer tangibilidade ao estudo dos afetos. O mapa afetivo possui bases na psicologia social e psicologia ambiental. É uma proposta que versa sobre a implicação do sujeito com o ambiente. Seu foco não é a orientação, apesar de poder atuar nessa função, aproximando-se mais da primazia da representação que, no caso, foca na afetividade e a estima de lugar. Ele parte de espaços e elementos objetivos e vivenciais envoltos dos significados e dos sentidos dados pelo sujeito, podendo ser elaborados de diferentes formas e segundo o desejo do respondente.
O IGMA é composto por onze itens: desenho, significado do desenho, sentimentos, palavras-sínteses, o que pensa da cidade, escala Likert, comparação da cidade, caminhos percorridos, participação em associação, participação eventual em movimentos sociais, características sociodemográficas. Foram utilizados, nesta pesquisa, somente os itens qualitativos do IGMA, deste modo retiramos a escala Likert associada. Optamos, também, pela retirada do componente do instrumento que questiona sobre a participação das respondentes em associações comunitárias, tendo em vista que já sabiamos que todas participam da associação comunitária de idosos. O IGMA é um instrumento flexível e dinâmico, permitindo esses trânsitos sem perda de qualidade para o estudo. O IGMA direciona-se ao estudo da relação entre sujeitos e ambientes variados. Inicialmente, opta-se por um local (unidade de saúde, casa, bairro, comunidade, cidade, país etc.) com o qual o sujeito tenha algum vínculo para direcionar o instrumento. Porém, neste estudo decidimos pela não especificação de categoria espacial restrita, ficando a cargo das participantes eleger o local ou locais que pertencessem aos seus percursos de cuidado em saúde. Desse modo, utilizamos o conceito amplo lugar de cuidado em saúde. O IGMA é direcionado para possibilitar a categorização de imagens que sintetizam os afetos e sentidos expressos e auxiliam na compreensão da relação pessoa-ambiente. As imagens principais são: pertencimento, agradabilidade, insegurança, destruição e contraste. Dada a flexibilidade do instrumento, outras imagens podem ser elaboradas a partir das demandas do contexto (Pacheco, 2018PACHECO, F. P. Afetividade e implicações psicossociais vividas por moradores de uma comunidade ameaçada de desapropriação em Fortaleza. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal do Ceará, 2018.).
A aplicação foi feita com 13 mulheres da comunidade, com idades entre 38 e 77 anos, que participam da associação comunitária de idosos. Quanto ao momento da aplicação, foi falado para as participantes do grupo sobre a proposta da atividade, sendo realizado convite para que participassem. A aplicação aconteceu de forma coletiva, porém tentamos prezar para que cada uma respondesse o seu instrumental individualmente. As participantes receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) distribuído junto com o IGMA. A pesquisa foi custeada com recursos próprios e foi devidamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), com número CAAE 13794519.3.0000.5037.
Neste trabalho, a categoria “lugar de cuidado em saúde”, foi utilizada a fim de localizarmos os espaços de saúde institucionais e não-institucionais buscados pelas participantes e afetos relacionados a estes.
Análise dos mapas
Foram reunidos 13 mapas afetivos, havendo, entre eles, algumas repetições quanto aos lugares eleitos pelas participantes. Assim, os mapas se dividiram em quatro grupos definidos pela escolha espacial principal: igreja ou centros religiosos; casa; espaços comunitários e centro comercial. A seguir, apresentamos um apanhado dos conteúdos presentes nos mapas organizados de acordo com os quatro grupos identificados.
A categoria sentido presente nos quadros é construída a partir de síntese elaborada pelas pesquisadoras com base no que é trazido tacitamente no instrumento. Todas as outras categorias são transcritas como colocadas pelas respondentes. A seguir, caracterizamos separadamente cada uma das categorias identificadas nos mapas.
Igreja como lugar de cuidado em saúde
Os mapas que representam igreja (todas evangélicas) deflagraram que estes são lugares que geram relações de amparo (“onde me sinto bem, com paz no coração”- respondente 2; “abrigo”- respondente 1), propiciando convivência comunitária e sentimentos positivos (“Do acolhimento, dos irmãos, da palavra de Deus”- respondente 4) e negativos (“desunião”- respondente 3; “falta dos membros nas obrigações e responsabilidades”- respondente 6) em relação aos companheiros de religião. São lugares que propiciam bem-estar individual e busca por cuidados, sendo colocados por algumas respondentes como “pronto-socorro” (respondente 3) ou lugar de “cura” (respondente 5). Além disso, uma participante fez oposição entre igreja e hospitais públicos. Neste caso, o hospital foi representado a partir da insegurança e desamparo e a igreja apareceu como alternativa a essa experiência (“entre o hospital e a igreja, prefiro a igreja. O hospital em último caso”, “Meu desenho representa um hospital público. A espera para marcar um exame. O paciente morre antes da consulta”, “Igreja evangélica pela fé você pode ser curado pelo poder de Deus.” - respondente 6).
Em quatro dos IGMAs, as respondentes afirmaram não conseguir comparar a igreja a nada (“algo muito bom, difícil de imaginar”- respondente 2; “não dá pra comparar com nada porque lá é tudo. É onde Deus está”- respondente 3), colocando-a em patamar idealizado. Em algumas respostas, é trazida a expectativa de cuidado em saúde como algo que a igreja daria conta em sua totalidade (“Estando lá cuido de toda minha saúde física e espiritual”- respondente 2; “é meu pronto socorro” - respondente 3; “um lugar de paz, de cura e milagres” - respondente 6). Dois mapas (Mapas 1 e 6), explicitaram essa oposição e analisamos que as imagens que melhor os classificam são de contraste e de insegurança, respectivamente.
As igrejas são representadas, ainda, como locais acessíveis (“muito próximo a minha casa”- respondente 5; “dois quarteirões da minha casa, muito próximo”- respondentes 2 e 4). Podemos perceber que uma característica da comunidade é a presença numerosa de instituições evangélicas. Muitas das participantes em outros momentos declararam ser evangélicas. Porém, percebemos a presença significativa do sincretismo na comunidade, pois persevera também o trato com as plantas e alguns saberes tradicionais e ancestrais. Além disso, práticas culturais e festivas ligadas à luta quilombola estão presentes, a exemplo da comemoração do dia 20 de novembro, data na qual pessoas da localidade se deslocam para outra comunidade quilombola (localizada em Tururu-CE), onde ocorre o evento alusivo ao dia da Consciência Negra.
No quadro abaixo, trazemos a análise de um dos mapas que compõe a categoria.
Casa como lugar de cuidado em saúde
Os mapas que representam o ambiente da casa referem-se às memórias familiares, à saudade e à natureza (“paraíso de amor e natureza”- respondente 9; “falta da mãe e do pai que faleceram”- respondente 7) . Representam sonhos, conquistas e afetos profundos, sendo lugares de encontros (“um lar feliz porque é do jeito que eu sonhava”- respondente 10; “minha casa é grande. Dá pra caber todos quando chegam”- respondente 7). Também foi demarcado por algumas respondentes a insatisfação com espaços externos, como estradas e calçadas, por questões estruturais (respondentes 8, 9 e 10). Em outros momentos, as participantes revelaram também sentir que a comunidade atualmente é mais insegura, contrapondo sentimentos de bem-estar e de segurança no que se refere à casa. Há também o desejo de mudanças na comunidade. Algumas destas, apontavam para a forma como a comunidade era no passado e o desejo de reviver o espaço como anteriormente, além da demanda por áreas de convivência como praças, academias ao ar livre e feiras. Esses mapas evocaram memórias e desejos, tanto no que dizia respeito à própria casa (saudade de familiares que faleceram), quanto à comunidade. A casa evoca a relação com a coletividade e com antepassados (ancestralidade).
O quadro abaixo traz informações referentes a um dos mapas que compõe essa categoria.
Espaços comunitários como lugares de cuidado em saúde
Mapas que representam espaços comunitários trazem a presença de natureza e de hortas e são espaços que geram vinculação, memória, sentimento de proteção e contato com as raízes. Têm forte ligação com a identidade de lugar e questões culturais por representarem saberes populares e ancestrais, além de fazerem parte de atividades cotidianas. São espaços ameaçados e que evocam saudade naqueles que já os perderam, revelando lembranças e afetos intensos. Propiciam também convivência comunitária e familiar, podendo envolver o espaço da casa. São locais de grande significância para a cultura local e que compõem a produção de saberes e trocas simbólicas. Uma das respondentes pontuou a importância que raizeiros/as, rezadeiras/os, benzedeiras/os e parteiras tem no fortalecimento das práticas comunitárias. Porém, segundo esta, não há reconhecimento nem articulação por parte dos serviços de saúde com estas práticas populares. Esses são os locais que trazem à tona a questão da identidade. Trouxemos o mapa 13 referente à imagem de contraste no Quadro 4. Essa imagem pode indicar uma estima de lugar potencializadora ou despotencializadora a depender dos movimentos possíveis para o sujeito em relação.
Centro comercial como lugar de cuidado em saúde
O mapa que representou centro comercial evoca o desejo por novidades e novas relações. O que situamos como centro comercial refere-se ao centro da cidade de Caucaia, bairro no qual se concentram lojas, farmácias, lanchonetes, supermercados, feira e agências lotéricas. É, portanto, um espaço de circulação intensa de pessoas, mercadorias e atividades ligadas ao consumo. Este local não fica distante da comunidade e existe linha de transporte coletivo que permite o deslocamento entre os dois lugares.
É um lugar que emociona também pela decoração e pelas surpresas que propicia, porém possui ruas poluídas, causando predominância da imagem de contraste. Está mais relacionado a práticas de consumo e datas comemorativas/comerciais, mas também permite encontros, sendo comparado com espaços mais íntimos, como veremos no quadro-síntese abaixo. Apenas uma pessoa trouxe esse lugar no instrumental, por isso não pudemos explorá-lo com maior profundidade.
Locais secundários de cuidado em saúde
Acrescentamos ao instrumental uma questão referente a outros espaços acessados para o cuidado em saúde. Definimos estes como “locais secundários de cuidado em saúde” por não representarem a escolha principal deflagrada no instrumento, apesar de permitirem a ampliação do reconhecimento de espaços que agregam função de cuidado. Expomos abaixo a tabela com os locais e com a quantidade de instrumentos nos quais foram referenciados.
Interessante demarcar que a instituição “posto de saúde” aparece nas opções das participantes, todavia, integra um universo de muitos outros locais. Isso demonstra que as participantes trouxeram para seus instrumentais uma compreensão ampla de saúde e cuidado. A partir da tabela podemos trazer saúde como: acesso à escola, aos serviços específicos de saúde, aos espaços de lazer e de convivência comunitária, aos locais com natureza e manifestações culturais. Parece-nos que, para as participantes, é evidente a compreensão de que saúde está onde a vida acontece. Tal percepção se aproxima da noção de integralidade.
Resultados
Em parte considerável dos mapas, identificamos que as participantes relacionam cuidado em saúde aos espaços que permitem trocas simbólicas e afetivas. Isso expressa o desejo de ser cuidado e de pensar saúde pela experiência coletiva.
Alguns estudos sobre itinerários terapêuticos em comunidades quilombolas também encontraram nas práticas tradicionais e coletivas, no contato com a natureza e no compartilhamento de memórias, experiências que proporcionam promoção da saúde e prevenção de adoecimento (Aciole; Silva, 2021ACIOLE, D. C. A. M., SILVA, J. Concepções e itinerários terapêuticos de pessoas em sofrimento psíquico em contextos quilombolas. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 33, 2021. DOI: 10.1590/1807-0310/2021v33229558
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2021v3... ; Batista; Rocha, 2020BATISTA, E. C.; ROCHA, K. B. Saúde mental em comunidades quilombolas do Brasil: uma revisão sistemática da literatura. Interações, Campo Grande, v. 21, n. 1, p. 35-50, 2020. DOI: 10.20435/inter.v21i1.2149
https://doi.org/10.20435/inter.v21i1.214... ; Fernandes; Santos, 2016FERNANDES, S. L.; SANTOS, A. O. Itinerários Terapêuticos de mulheres quilombolas do Agreste Alagoano, Brasil. Interfaces, Florianópolis, v. 16 n. 2, p. 127-143, 2016., 2019FERNANDES, S. L.; SANTOS, A. O. Itinerários Terapêuticos e Formas de Cuidado em um Quilombo do Agreste Alagoano. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 39, n. spe, p. 38-52, 2019. DOI: 10.1590/1982-3703003176272
https://doi.org/10.1590/1982-37030031762... ). Estes mesmos estudos apontaram a dificuldade de acesso aos serviços de saúde como algo comum no cotidiano dessas comunidades.
Vale ressaltar que nos mapas afetivos analisados o lugar “casa” deflagrou algumas características em comum com os espaços comunitários. Ambos foram relacionados ao contato com a natureza, com a ancestralidade e com memórias afetivas. A casa aparece como espaço compartilhado, mas também como refúgio à insegurança encontrada nos espaços externos. Ambos evidenciaram imagem de contraste. Quando o sujeito sente-se implicado com o lugar e manifesta desejo e busca por melhorias, criação de estratégias e ampliação da percepção crítica, entende-se que a imagem de contraste pode estar relacionada a afetos potencializadores (Pacheco, 2018PACHECO, F. P. Afetividade e implicações psicossociais vividas por moradores de uma comunidade ameaçada de desapropriação em Fortaleza. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal do Ceará, 2018.). Percebemos no mapa referente aos espaços comunitários essa característica.
As participantes citaram, em momentos variados, a falta de interlocução entre equipamentos de saúde e práticas comunitárias. Alves e Seminotti (2009ALVES, M. C., SEMINOTTI , N. Atenção à saúde em uma comunidade tradicional de terreiro. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, n. 1, p. 85-91, 2009. DOI: 10.1590/S0034-89102009000800013
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200900... ) utilizam a noção de abertura para o diálogo para trazer à tona a responsabilidade dos serviços de saúde em construir interlocução com práticas populares e terapêuticas tradicionais e comunitárias sem hierarquizar saberes.
Identificamos nos mapas que para um número expressivo das participantes as igrejas neopentecostais são percebidas como produtoras de cuidado. É dado histórico que durante o período do Brasil Colônia, os povos indígenas e africanos em diáspora eram forçados pelo processo de catequização a abandonar suas crenças a partir da conversão ao catolicismo. Do Nascimento e Abib (2016NASCIMENTO, S. A.; ABIB, P. O efeito da cruzada neoevangélica sobre remanescentes de quilombo: questões sobre educação e identidade quilombola. Horizontes, Campinas, v. 34, n. 1, p. 33-44, 2016. DOI: 10.24933/horizontes.v34i1.338
https://doi.org/10.24933/horizontes.v34i... ) referem que o neopentecostalismo na atualidade tem adentrado os territórios quilombolas e realizado um projeto semelhante. Apontam que “A resistência nos quilombos passa pela afirmação da identidade nos afazeres, nos ritos, nos festejos, assim como pela negação desse mesmo legado como forma de defesa e preservação” (p. 37). Assim, as tradições e crenças das comunidades passam por processos de ressignificação, misturando-se a outras referências, por vezes sendo camufladas ou negadas.
Alguns autores (Fernandez et al., 2018FERNANDEZ, J. C. A.; SILVA, R. A.; SACARDO, D. P. Religião e saúde: para transformar ausências em presenças. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1058-1070, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170757
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817... ; Valla et al., 2004VALLA, V. V.; GUIMARÃES, M. B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Abrasco; 2006.) falam sobre a capacidade protetiva das religiões, por produzirem espaços de apoio social e de valorização de si. Valla et al. (2004VALLA, V. V.; GUIMARÃES, M. B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Abrasco; 2006.) discutem que a situação de pobreza produz danos nos sentimentos de autoestima e de dignidade, apontando os centros religiosos como espaços em que estes podem ser resgatados. Os autores fazem referências especificamente às religiões evangélicas. Contudo, destacam que apesar de constituírem espaços que favorecem vínculo e apoio social, não discutem ou promovem a busca por uma transformação social efetiva. Observamos nos conteúdos trazidos nos mapas, que ao se apresentarem enquanto alternativa a tantas demandas e ocuparem um lugar idealizado, a partir de representações de oposição, as igrejas podem se apresentar enquanto despotencializadoras de mobilização para a busca de melhorias de serviços públicos, por exemplo.
Assim, é compreensível que esses espaços se tornem referência para pessoas da comunidade, pois exercem papel de escuta e acolhimento quando estes muitas vezes são negados em vários outros espaços em um fenômeno característico da dinâmica colonial. Estudos apontam os espaços religiosos como componentes expressivos dos itinerários terapêuticos de comunidades quilombolas, referindo também a falta de acesso a serviços de saúde e precárias condições de vida nesses territórios (Fernandes; Santos, 2016FERNANDES, S. L.; SANTOS, A. O. Itinerários Terapêuticos de mulheres quilombolas do Agreste Alagoano, Brasil. Interfaces, Florianópolis, v. 16 n. 2, p. 127-143, 2016., 2019FERNANDES, S. L.; SANTOS, A. O. Itinerários Terapêuticos e Formas de Cuidado em um Quilombo do Agreste Alagoano. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 39, n. spe, p. 38-52, 2019. DOI: 10.1590/1982-3703003176272
https://doi.org/10.1590/1982-37030031762... ).
Nascimento e Abib (2016NASCIMENTO, S. A.; ABIB, P. O efeito da cruzada neoevangélica sobre remanescentes de quilombo: questões sobre educação e identidade quilombola. Horizontes, Campinas, v. 34, n. 1, p. 33-44, 2016. DOI: 10.24933/horizontes.v34i1.338
https://doi.org/10.24933/horizontes.v34i... ) discutem a discrepância existente entre práticas culturais quilombolas e o discurso evangélico. Destacam que estas religiões “classificam seus ritos e fazeres seculares como ações ligadas ao mal e ao demônio” (p. 34) ao se referirem a religiões de matriz africana e outras práticas culturais e ritualísticas ligadas ao povo quilombola e indígena. Sobre isso, Santos coloca que:
o processo de escravização no Brasil tentou destituir os povos afro-pindorâmicos de suas principais bases de valores socioculturais, atacando suas identidades individuais e coletivas, a começar pela tentativa de substituir o paganismo politeísta pelo cristianismo euro monoteísta. (Santos, 2015SANTOS, A. B. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015., p. 37)
Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) disserta sobre racismo e colonização e seus impactos na vida, na saúde e na subjetividade de pessoas negras ao redor do mundo. Além de tratar sobre a violência e os traumas produzidos pela dinâmica colonial, ressalta que as vidas e as vozes de pessoas negras ainda são negligenciadas e silenciadas no contexto atual. A autora reflete os efeitos do racismo sobre a produção de conhecimento e construção de práticas em campos diversos. Isso pode sem grandes dificuldades ser observado no Brasil, na vivência de pessoas negras, quilombolas e indígenas.
Santos (2018SANTOS, A. O. Saúde da população negra: uma perspectiva não institucional. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, Uberlândia, v. 10, n. 24, p. 241-259, 2018.) aponta a vinda forçada dos povos africanos no contexto da colonização como fator presente no adoecimento da população afro-brasileira. O autor pauta a perda de referências culturais, a violência imposta pela cultura racista e a perda de memória familiar como determinantes para o adoecimento da população negra no presente.
Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) e Hooks (2010HOOKS, B. Vivendo de amor. Portal Geledés, São Paulo, 9 mar. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/ >. Acesso em: 9 jan. 2020.
https://www.geledes.org.br/vivendo-de-am... ) falam da importância das populações atingidas pelo racismo pautarem seus saberes e suas práticas como perspectiva de sobrevivência e emancipação. Nos mapas pudemos perceber como o cultivo de saberes e memórias ancestrais são vitais para as respondentes.
Ademais, Santos (2018SANTOS, A. O. Saúde da população negra: uma perspectiva não institucional. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, Uberlândia, v. 10, n. 24, p. 241-259, 2018.) pontua que uma outra concepção de saúde precisa ser pautada em consonância com a produção de um novo mundo e aborda isso a partir da aposta em práticas de cuidado que pensem a trajetória do povo negro.
Quem recupera a memória da nossa história e da nossa resistência, considera o embate cultural e civilizatório no qual a população diaspórica se encontra, percebe que a população negra e sua saúde mental não têm como receber uma abordagem individualizante e médica. Nossa saúde mental necessita de uma reestruturação de mundo. (Santos, 2018SANTOS, A. O. Saúde da população negra: uma perspectiva não institucional. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, Uberlândia, v. 10, n. 24, p. 241-259, 2018., p. 248)
Pensar o cuidado numa perspectiva integral é pensá-lo também no âmbito político, é se permitir interpelar pelas práticas existentes no território e potencializá-las na produção e promoção da saúde. Pensar a saúde, de modo a romper com a lógica colonial, é um desafio que exige dos serviços e dos profissionais que seus saberes e práticas sejam repensados.
Considerações finais
Encontramos neste estudo pistas que apontam para a construção de projetos em saúde que sejam abundantes em coletividade e sentidos, que propiciem também a resistência compartilhada numa tessitura que pense a autonomia. Desse modo, lugares de cuidado em saúde tratam de uma compreensão que fala também dos tipos de sociabilidades que estão postas a partir de práticas e de formas de pensar os espaços em que o cuidado é construído.
É preciso pontuar que uma transformação social efetiva, em diálogo com as práticas em saúde, necessita ser pautada a partir de uma perspectiva plural. Discussões sobre raça, etnia e gênero se fazem ainda pouco expressivas nos serviços e nos espaços de formação de profissionais da saúde.
Isso nos coloca diante da percepção de que para além do reconhecimento institucional desses temas, existe um trabalho a ser feito nas formações, nos cotidianos dos serviços, nas discussões em equipe e nas construções de novas práticas em saúde. Fazem-se necessárias pesquisas e práticas que proponham movimentos e estratégias alinhadas a produção em saúde enraizada, que pensem as identidades afro-brasileiras, indígenas, quilombolas, de povos de terreiro, povos ciganos e ribeirinhos, entre outros. Que se abram a escuta, ao diálogo e que rompam com o lugar hierarquizado no cuidado em saúde. Serviços que se proponham a pensar os sofrimentos e as iniquidades em saúde que compõem as situações de adoecimento dessas populações atravessadas pela história de violência colonial e pelo racismo.
Desse modo, enquanto agentes de cuidado, precisamos buscar romper com o discurso colonizador. O cuidado é também político. O cuidado precisa vir do afetar-se, só por meio do afeto é possível surgir um fluxo de vida criativa.
Por fim, faz-se necessário direcionar esforços para a construção de um projeto societário antirracista e contra-colonial (Santos, 2015SANTOS, A. B. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015.). Considerar tais questões é promover um serviço de saúde integral, colocando-as não como discussões secundárias, mas como reordenadores do modo de como a atenção à saúde é pensada e construída.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Nov 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
17 Maio 2022 - Aceito
18 Maio 2022