As Ciências Sociais no contexto das encruzilhadas do SUS

Amélia Cohn Sobre o autor

A aguda crise que assola o país na atualidade provoca na comunidade acadêmica a perplexidade do inesperado. Sobretudo depois das experiências de consolidação democrática representadas, embora diversamente, pelos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Tamanho retrocesso histórico não constava do imaginário científico, em que pesem, no caso da saúde, as constantes e recorrentes agressões ao desenvolvimento do SUS e à consolidação dos preceitos constitucionais, em permanente construção desde 1988.

No caso da saúde, as ciências sociais revelaram-se fundamentais para a consolidação do campo da Saúde Coletiva, embora sempre requisitada de forma que aqui denominarei de “dependente”, apesar de, juntamente com a subárea de Política, Planejamento e Gestão, terem sido consideradas como pilares do campo. Resta explicitar a razão da qualificação de “dependente”. Na obra citada abaixo, ao reconstituírem a história da formação do campo, os autores trazem à luz o fato de os médicos líderes na emergência, médicos de formação básica, aproximarem-se de cientistas sociais, e mesmo incorporarem cientistas sociais com interesse intelectual e político na constituição do campo de conhecimento das Ciências Sociais e Saúde nos quadros da universidade (Vieira-da-Silva, 2018VIEIRA-DA-SILVA, L. M. O Campo da Saúde Coletiva: gênese, transformações e articulações com a Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; Salvador: EDUFBA, 2018., p. 63). A partir de então, e estamos falando do final da década de 60 e os anos 70 do século passado, as ciências sociais vão sendo progressivamente incorporadas à produção de conhecimento da Saúde Coletiva, mas tendo seu objeto de estudo definido pela agenda da Reforma Sanitária Brasileira, e perdendo com isso a autonomia de uma visão mais específica da saúde como objeto das ciências sociais.

A própria evolução do campo da Saúde Coletiva, ela sim visceralmente marcada pela luta na garantia da saúde como direito e pela construção do arcabouço institucional e organizacional da saúde que lhe daria concretude, acabou por gerar algumas características das linhas de análise e de conteúdo adotadas pelas ciências sociais na área.

Uma delas, já assinalada por esta autora em texto de 1989 (Cohn, 1989COHN, A. Caminhos da Reforma Sanitária. Lua Nova, São Paulo, n. 19, p. 123-140, 1989. DOI: 10.1590/S0102-64451989000400009
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): a necessidade de o campo fornecer fundamentação à proposta da reforma sanitária, bem como da organização institucional a ser construída e/ou em construção, e ainda da estratégia política adotada - a reforma por dentro do Estado. Como consequência, precocemente a ciência política ganha destaque entre as ciências sociais na produção científica, a partir de meados dos anos 70 do século passado, momento fundante do campo da Saúde Coletiva.

Estudos e análises marxistas prevalecem na produção científica para fazer frente ao “saber tradicional” da saúde pública, de cunho higienista e positivista. Contrapõem-se assim às análises até então prevalecentes, que focavam saúde da perspectiva antropológica (cultural e comportamental) e sociológica (tipos de relações sociais entre sujeitos sociais, divisão de trabalho, entre outros) de então. São inúmeros os estudos clássicos da época, vale lembrar aqui um dos pioneiros (Ferreira-Santos, 1973FERREIRA-SANTOS, C. A. A enfermagem como profissão. São Paulo: Editora Pioneira, 1973.) na área das ciências sociais, todos eles consistentes e bem fundamentados, que efetivamente contribuíram para o entendimento da relação saúde e sociedade, mas que não abarcavam a luta social e política de então, que consistia em combater a privatização da saúde, o modelo hospitalocêntrico da assistência médica, e propor um novo modelo de atenção à saúde integral, equânime e universal, promovido por um sistema público de saúde, num contexto de luta pela redemocratização da sociedade.

Assim, embora a antropologia, e posteriormente a sociologia e demais ciências humanas, tenham, grosso modo, antecedido a ciência política no estudo da saúde/doença, no caso brasileiro elas terminam por perder proeminência nas análises e nos estudos políticos que mais diretamente respondiam (e respondem) às necessidades e prioridades da Reforma Sanitária; e análises inicialmente de cunho marxista, já que a Saúde Coletiva se constrói a partir da sua oposição ao saber positivista até então dominante. Gramsci é um dos autores mais convocados nas análises, e continua sendo por parte de vários autores clássicos e históricos estudiosos da história do SUS e de suas conquistas e retrocessos. Dentre eles os inúmeros textos, entrevistas e conferências de Jairnilson Silva Paim.

Evidencia-se assim um complexo movimento na produção das ciências sociais e saúde em que, como aponta Everardo Duarte Nunes (2015NUNES, E. D. A revista Ciência & Saúde Coletiva e o processo de institucionalização de um campo de conhecimentos e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, p. 1975-1982, 2015.), mas também em vários outros textos, de um lado tem-se a expansão das fronteiras de conhecimento na área de humanas voltadas para a saúde, e de outro a proeminência das análises políticas no interior da Saúde Coletiva, e que mais de perto dialogam com as demais áreas desse campo de conhecimento - criando-se, no período mais recente, uma diáspora entre as análises de cunho mais globais com análises e teorias de cunho mais individualizante -, voltado para as dimensões identitárias, o acolhimento e a humanização da atenção à saúde.

Não se trata aqui de hierarquizar por importância e peso essas distintas linhas de análise e de produção teórica a respeito. Mas de apontar que permanece a dificuldade de se enfrentar, no campo das ciências sociais, a articulação entre o biológico e o social (Asa Cristina Laurell), o micro e o macro, e a construção de articulações horizontais entre as várias subáreas das ciências humanas. Tudo isto bordado num desenho traçado pelos distintos graus de proximidade e mesmo “dependência” destas áreas com a dinâmica do processo político da Reforma Sanitária Brasileira, seja nos seus momentos ofensivos, seja nos seus momentos defensivos, como os atuais.

A necessidade de um projeto de refundação da Reforma Sanitária no país é um consenso, apontando para a necessidade de se construir um projeto de nação e de sociedade condizente com as propostas da saúde como um direito. Outro consenso consiste no fato de o estrangulamento do financiamento da saúde ser um golpe extremo contra o SUS, com a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do teto dos gastos públicos, embora ela não tenha nunca contado com a generosidade financeira do Estado, dado ter se constituído já em tempos da primazia dos preceitos dos ajustes para o equilíbrio fiscal. Em tempos de pandemia, vale registrar que essa radicalização da restrição orçamentária consiste no corte de oxigênio do SUS. Mas junto com isso, vem o quase consenso de que o SUS padece de um acentuado déficit de gestão.

Com isso, e esse argumento é partilhado, embora de distintas formas, por aqueles a favor do mercado e da privatização da saúde e do SUS, bem como por aqueles sanitaristas históricos ferrenhos defensores do SUS, tem-se uma explosão de estudos e teorias sobre gestão no campo da Saúde Coletiva, de certa forma contribuindo para a criação de um ambiente asséptico de análises que recaem sobre a ênfase na reorganização institucional do SUS, agora na atualidade com ênfase nas regiões e redes de saúde, que a partir de 2000 finalmente ganharam presença no debate público, até mesmo impulsionado pela refundação da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, que teve sua primeira reunião em 2002.

Não obstante, numa conjuntura em que o SUS vem sendo vítima de golpes mortais, uma assepsia das análises na área das ciências humanas e sociais pouco auxilia a necessária e urgente repolitização da luta pela saúde enquanto um direito social. Aproximar gestão da saúde enquanto administração pública e associá-la à análise política não é questão pouco complexa (Farah, 2011FARAH, M. F. S. Administração pública e políticas públicas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 45, n. 3, p. 813-836, 2011. DOI: 10.1590/S0034-76122011000300011
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).

Dessa forma, ao contrário do que deixa claro a história da constituição do campo da Saúde Coletiva, liderada pela Abrasco, quando visitamos os programas dos encontros e congressos de Ciências Sociais e Humanas; e de Política, Planejamento e Gestão; bem como dos Congressos Brasileiros de Saúde Coletiva, ciências sociais e humanas e ciência política, eles caminham guardando estreita distância entre si, mas em trilhas a maior parte do tempo paralelas, esta tornando-se a grande interlocutora da epidemiologia e dos estudos dos determinantes sociais da saúde.

Para o que se propõe aqui não há prescrição, mas simplesmente tentar apontar alguns caminhos. Estes, igualmente duvidosos nesse tempo de incertezas e perplexidades. Mas os desafios atuais do SUS nos convocam, aos especialistas da área, a cultivar suas especificidades no conhecimento, buscando tecer fios de articulações que ampliem nossa capacidade de análise para a compreensão das questões sociais, culturais, políticas da saúde para além da área da saúde. Talvez um primeiro esforço resida na busca de análises e diálogos fora do campo da Saúde Coletiva, produzidos por cientistas sociais não vinculados à área, para assim superar uma dicotomia ainda existente de, com exceção dos autores clássicos, a área da Saúde Coletiva ser desconhecida ou colocada em segundo plano pelos cientistas sociais não vinculados à saúde, e vice-versa. Os esforços que vêm sendo feitos revelam-se ainda insuficientes, dada a magnitude da tarefa de buscar entender o lugar da saúde na sociedade atual, no Estado e na política. Até porque a experiência das conquistas da saúde deu-se a partir do interior do Estado, com especialistas com compromissos políticos ocupando cargos estratégicos nas instituições públicas das três esferas de governo. E, a partir de 2016, esse corpo de sanitaristas foi despejado de forma radical do interior dos aparelhos de Estado. É uma situação absolutamente nova, que desafia nossa experiência histórica.

Por outro lado, as conquistas na saúde a partir de 1988 foram gestadas durante o processo de luta pela redemocratização do país, vinculadas a um projeto de desenvolvimento social generoso, civilizatório (Sergio Arouca, médico sanitarista e político) para a sociedade. Agora, em situação muito pior que aquela de então, trata-se de resistir e, em grande parte, de retomar aquelas conquistas. Para tanto, congregar cientistas das várias áreas das humanidades com os demais cientistas de outras áreas permitirá auxiliar na formulação de um novo projeto para a nação, em diálogo com a sociedade e contando com a liderança de proeminentes sujeitos políticos e sociais, e a partir daí buscar reconquistar a sociedade na defesa do SUS.

O ponto de partida nacional é desfavorável no sentido de que a população encontra-se absolutamente pulverizada entre situações de fome extrema, de insegurança alimentar, desemprego e subemprego, e sem possibilidade de futuro depois de quase cinco anos de governos não só incompetentes, mas que praticam a necropolítica e a aporofobia nas ações públicas, trazendo um projeto de governo anticivilizatório, No entanto, uma proposta que aponte para essa possibilidade de retomada da construção democrática da sociedade e do Estado é possível e desejável. Para tanto, as ciências sociais estão aptas e com quadros extremamente capacitados para realizar e sistematizar estudos já realizados nas várias áreas que possam ser absorvidos pela área da Saúde Coletiva, desde que ela volte os olhos para fora também. Tomando como exemplo a proposta provocativa (como ele mesmo afirma) lançada ainda em 2013 por Gastão Wagner de Souza Campos, de tornar o SUS uma autarquia pública tendo como núcleo organizativo as regiões de saúde já existentes. Em termos da reorganização do SUS, pode até ser interessante. Mas a questão fundamental não é essa, mas sim o papel e o lugar das autarquias no atual projeto (e no projeto futuro, a ser elaborado) no interior do Estado, os mecanismos para seu controle público, dadas as características do Estado brasileiro acentuadas por estes últimos governos. Torna-se o SUS, enquanto uma autarquia, mais ou menos vulnerável às pressões e demandas do setor privado e às distorções do que se venha a entender como uma política efetivamente pública da saúde? O que nos ensinam as experiências das agências regulatórias e das várias autarquias públicas existentes na saúde?

Análises com vistas a se repensar as teorias e práticas da Reforma Sanitária pregressa já foram feitas, e bem feitas (Fleury, 2018FLEURY, S. (org.). Teoria da Reforma Sanitária: diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.). Trata-se agora de renovar os olhares e sermos propositivos para que possamos captar as novas complexidades e fracionamentos da sociedade, além de trazer instrumentos para que se possam formular projetos com os quais ela se identifique, porque neles reconhece a possibilidade de responderem a suas necessidades e anseios.

O SUS mostrou para a sociedade sua potência frente à pandemia da covid-19, mostrou que apesar dos esforços do governo nacional de acionar medidas pró-vírus e contra a defesa da saúde da população, foi capaz de enfrentar essas condições adversas com brio e eficiência, seja no nível estadual (em alguns poucos casos), seja no nível municipal (em grande número de casos). E isso apesar das questões de má gestão sempre apontadas. A sociedade passou a reconhecer o SUS enquanto algo positivo, na contramão dos discursos ideológicos de décadas; agora cabe resgatar essa potência e levar avante a luta para que o SUS, enquanto um bem público da sociedade, seja reconhecido e defendido; e essa defesa conte com enorme capilaridade social, também característica dele. Saúde organiza e mobiliza segmentos sociais, como demonstra o passado, mas não mantem essa mobilização. E aí as lideranças sociais, políticas, sanitaristas, dentre várias outras, têm que estar respaldadas por forças sociais que efetivamente reconheçam o SUS como parte de seu projeto de futuro. Mas para tanto, há que se entender outras perspectivas de análise sobre a participação dos movimentos sociais nas políticas públicas e na gestão pública, produção que, se tradicional na área da Saúde Coletiva, vem ganhando importância e volume na área das Ciências Sociais, trazendo novas perspectivas de compreensão do fenômeno.

Necessário porque há que se buscar entender na atualidade essa nossa sociedade tão fragmentada e segmentada, ou como nomeiam alguns, fraturada (Cohn, 2020COHN, A. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, n. 109, p. 129-160, 2020. DOI: 10.1590/0102-129160/109
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). Seus politraumatismos (no plural, a redundância é proposital) são inúmeros, há que se aprender a reconhecê-los, respeitá-los e contemplá-los em nossos estudos e propostas. De imediato, as análises binárias que marcaram o início da constituição do campo da Saúde Coletiva não têm mais espaço nesse propósito. Por outro lado, não se pode correr o risco de buscar uma transdisciplinaridade que evanesça as especificidades de cada perspectiva de análise. Como na democracia, há que se buscar a convivência das diferentes disciplinas pautada pelo enriquecimento da compreensão da realidade que nos oprime e espanta até os menos otimistas, dado o tamanho do retrocesso democrático (social, político, institucional) que vem demonstrando. Carlos G. Gadelha já convocou a nossa coletividade para congregarmos o que denominou “energias utópicas, ideias e políticas públicas”, sigamos em frente, pois a utopia serve para nos fazer caminhar, como lembrou Fernando Birri.

Referências

  • COHN, A. Caminhos da Reforma Sanitária. Lua Nova, São Paulo, n. 19, p. 123-140, 1989. DOI: 10.1590/S0102-64451989000400009
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64451989000400009
  • COHN, A. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, n. 109, p. 129-160, 2020. DOI: 10.1590/0102-129160/109
    » https://doi.org/10.1590/0102-129160/109
  • FARAH, M. F. S. Administração pública e políticas públicas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 45, n. 3, p. 813-836, 2011. DOI: 10.1590/S0034-76122011000300011
    » https://doi.org/10.1590/S0034-76122011000300011
  • FERREIRA-SANTOS, C. A. A enfermagem como profissão São Paulo: Editora Pioneira, 1973.
  • FLEURY, S. (org.). Teoria da Reforma Sanitária: diálogos críticos Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.
  • VIEIRA-DA-SILVA, L. M. O Campo da Saúde Coletiva: gênese, transformações e articulações com a Reforma Sanitária Brasileira Rio de Janeiro: Fiocruz; Salvador: EDUFBA, 2018.
  • NUNES, E. D. A revista Ciência & Saúde Coletiva e o processo de institucionalização de um campo de conhecimentos e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, p. 1975-1982, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2022
  • Aceito
    23 Mar 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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