Planejamento reprodutivo em área indígena e a busca pela atenção diferenciada: os dilemas entre desigualdade e diferença

Bruna Teixeira Ávila Sandra Valongueiro Alves Sobre os autores

Resumo

A atenção diferenciada é um princípio fundamental para um cuidado não colonizador das populações indígenas. Um dos desafios nesse campo é o planejamento reprodutivo, por envolver tensões entre vontades coletivas e individuais, além da tutela e da autonomia, principalmente com a inserção mais contínua de profissionais via Programa Mais Médicos, como ocorreu no Território Yanomami. O objetivo deste artigo é discutir os aspectos envolvidos na atenção diferenciada ao planejamento reprodutivo, por meio da comparação entre o trabalho de profissionais de saúde em área indígena e não indígena. Para tanto, foi realizado um estudo de caso etnográfico com observação participante do exercício das equipes acessadas pela Supervisão do Programa Mais Médicos e entrevistas com seis profissionais, selecionados pela diversidade de seus perfis. A partir da análise de conteúdo, foram identificadas três categorias: diferença e desigualdade; similaridades; e desafios. Tais divisões trazem a noção de comparação fisiológica, que gera abordagem biomédica, passando pela confusão entre diferença e desigualdade, aspecto responsável por favorecer a colonização e a negação dos direitos - e até as compreensões dos profissionais sobre a cultura - que atravessam o diálogo intercultural.

Palavras-chave:
Atenção Diferenciada; Saúde Reprodutiva; Saúde de Populações Indígenas; Programa Mais Médicos

Introdução

O modelo de assistência à saúde indígena no Brasil se fundamenta na atenção integral, associada à noção de atenção diferenciada, que prevê o respeito à diversidade cultural (Brasil, 2002BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: Ministério da Saúde; FUNASA, 2002.). Entretanto, esse processo de “interculturalidade” apresenta conflitos e ambiguidades que se refletem tanto nas ações em saúde como na cultura e organização sociopolítica das aldeias. Dentre esses, a forma de atuação para com as mulheres indígenas, em especial no campo do planejamento reprodutivo, pode revelar diferentes compreensões de saúde e direitos reprodutivos, além de suscitar questões delicadas de controle populacional. Incorporam vontades coletivas e individuais e hierarquias entre as consciências étnicas e de gênero, numa dinâmica cotidiana entre tutela e autonomia no trabalho em saúde (Souza, 2007SOUZA, J. M. Trajetórias femininas indígenas: gênero, memória, identidade e reprodução. 2007. 127 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. ; Souza, 2017SOUZA, F. M., CORREIA, J. e FERRAZ, M. H. Os direitos reprodutivos das mulheres indígenas: relação entre direitos individuais de coletivos. In: COLÓQUIO DO MUSEU PEDAGÓGICO, 12., 2017. Anais…, Vitória da Conquista: Museu Pedagógico UESB, 2017. ).

A população Yanomami e seus subgrupos passaram por um complexo processo de contato com não indígenas e de inserção dos serviços de saúde em seu território. A situação sanitária desse povo, após a invasão dos garimpeiros, motivou a criação do Distrito Sanitário Yanomami (DSY), antes da criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Eusebi, 1991EUSEBI, L. A barriga morreu!: o genocídio dos Yanomami. São Paulo: Loyola, 1991. ). Com a inserção das equipes de saúde nas comunidades, houve ampliação dos cuidados a longo prazo, com os impactos mais profundos nas aldeias. Atualmente, essas equipes são praticamente completas, mesmo em áreas remotas, como é o caso do Projeto Mais Médicos para o Brasil (PMMB) em comunidades do Território Yanomami brasileiro.

O PMMB é responsável pelo provimento emergencial de médicos para regiões prioritárias, com aperfeiçoamento dos profissionais - como a supervisão acadêmica, em que há o acompanhamento pedagógico dos profissionais por médicos supervisores vinculados ao Ministério da Educação. Durante esse processo, surgiram as questões levantadas neste estudo, voltadas para comunidades do Distrito Sanitário Indígena (DSEI) Yanomami e Ye’kuana (Brasil, 2013BRASIL. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo. Brasília, DF, 23 out. 2013.). Este é responsável por garantir o cuidado no âmbito da Atenção Primária, sendo os demais níveis de complexidade ofertados pela rede de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 1999BRASIL. Lei n° 9.836, de 19 de setembro de 1990. Acrescenta dispositivos à Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde indígena. Diário Oficial da União, Poder Legislativo. Brasília, DF, 23 set. 1999.).

John Early e John Peters (1990EARLY, J. D. e PETERS, J. F. The Population Dynamics of the Mucajai Yanomama. San Diego: Academic Press, 1990.), analisando a dinâmica demográfica da população Yanomami próximo ao rio Mucajaí em Roraima, definiram quatro períodos: (1) pré-contato, de 1930 a 1956; (2) primeiros contatos, de 1957 a 1960; (3) de ligação, de 1961 a 1981; e (4) brasileiro, de 1982 a 1995. Os elementos que influenciaram essas transições passaram por distintas trajetórias, desde o sistema de casamentos cruzados11Casamentos cruzados são aqueles onde o cônjuge preferencial é um primo cruzado, ou seja, casamento preferencial com o filho da irmã do pai ou com a filha da irmã da mãe. Além de se caracterizarem como trocas, podem promover alianças entre grupos étnicos. (Pinto, 2016), as migrações e o adoecimento e morte por doenças infecciosas por meio do contato. A inserção do serviço de saúde parece ter contribuído para a redução da mortalidade dessa população, em certas áreas, durante esse processo, observou-se até que a taxa de crescimento populacional voltou a padrões pré-contato.

O período brasileiro destacou-se por um contato mais profundo com não indígenas, explosão do garimpo, migrações para as cidades e participação do movimento indígena em defesa de direitos e terras. Houve um baixo crescimento populacional devido a fatores diversos, dentre esses, queda da taxa de fecundidade e elevação da idade da primeira coabitação, em média aos quatorze anos (Pagliaro et al., 2005PAGLIARO, H; AZEVEDO, M. M.; SANTOS, R. V. (Org.). Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ , 2005. ). Apesar dos fatores que podem ter influenciado essa dinâmica populacional, os autores afirmam que o comportamento reprodutivo manteve o padrão ao longo desses anos na maioria dessas comunidades.

Estudo recente, considerando os biênios 1987-1988, 1994-1995, 2001-2002 e 2008-2009, revela que a população Yanomami duplicou em todas as suas regiões, com taxas de crescimento menores nos anos 1987-1988 a 1994-1995, momentos de maior interferência dos garimpeiros. Segundo Nilsson e Fearnsid (2017NILSSON, M. S. T, FEARNSID, P. M. Demografia e mobilidade Yanomami: avaliando mudanças socioambientais. Novos Cadernos NAEA, Belém do Pará, v. 20, n. 2, p. 27-50, 2017. DOI: 10.5801/ncn.v20i2.4326
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), a implantação dos serviços de saúde seria o elemento mais importante no comportamento demográfico desse povo no período como um todo.

Além disso, outras transformações podem ter ocorrido devido a mudanças socioeconômicas, territoriais e culturais, como a tentativa de criminalização da prática do aborto terminal (pós-parto)22Nota: Aqui, prefere-se usar esse termo no lugar de “infanticídio”, já que este carrega uma valoração que pode ser ampliada. Para maior aprofundamento: Albert (2011). e o acesso a métodos contraceptivos sintéticos. Acesso esse facilitado pela Portaria n. 1.059, de 23 de julho de 2015, ao incluir os métodos contraceptivos hormonais na Relação Nacional de Medicamentos para a Saúde Indígena (RENAME/Indígena), que passaram a ser fornecidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) (Brasil, 2015BRASIL. Portaria n°1059, de 23 de julho de 2015. Aprova o Elenco Nacional de Medicamentos da Saúde Indígena. Diário Oficial da União . Brasília, DF, 24 jul. 2015.).

Pesquisa com as mulheres Suruí - Rondônia (Valencia et al., 2010VALENCIA, M. M. A. et al. Aspectos culturales de la reproducción: el caso de los Suruí de Rondonia. Investigación y Educación en Enfermería, Antioquia, v. 26, p. 86-97, 2010. ) revelou manutenção de fecundidade elevada e trouxe importantes paralelos com a literatura do povo Yanomami. Entretanto, também apontou aspectos particulares, como os crescentes níveis de escolaridade, a medicalização do parto e o uso de contraceptivos. Apesar de ainda não suficientemente avaliados, parece haver um despreparo dos serviços de saúde em relação à saúde reprodutiva das mulheres indígenas, pelo desconhecimento sobre as suas especificidades e seus contextos, entre outros motivos (Valencia et al., 2010VALENCIA, M. M. A. et al. Aspectos culturales de la reproducción: el caso de los Suruí de Rondonia. Investigación y Educación en Enfermería, Antioquia, v. 26, p. 86-97, 2010. ).

O planejamento reprodutivo poderia ser visto a partir da concepção de autonomia das mulheres e controle de sua sexualidade, o que pode ser uma questão complexa para a realidade indígena; ou de uma concepção mais neomalthusiana, como instrumento de diminuição da pobreza via redução da população. Reafirma-se aqui que o planejamento reprodutivo deve ser sempre um direito e não uma imposição de políticas públicas e/ou serviços de saúde (Espinosa, 2003ESPINOSA, G. Salud y derechos reproductivos en México, una mirada de conjunto. In: MONTES, S.G. (Org.) Salud y derechos reproductivos en zonas indígenas de México. Memoria del seminario de investigación. Documentos de trabajo. Ciudad del México: El Colegio de México. 2003. p. 6-9.).

A expectativa dos profissionais pode ser de que a comunidade se adapte às demandas do sistema oficial de saúde, mesmo assumindo o discurso do diálogo intercultural, pois na prática o indígena é eleito como o “outro”. Dessa forma, a “interculturalidade” necessária à atenção diferenciada pode ser prescritiva e funcional, atuando como uma nova forma de poder ao manter o processo de colonização via a própria política de saúde indígena e por meio do biopoder (Rabinow; Rose, 2006RABINOW, P.; ROSE, N. O conceito de Biopoder hoje. Política & trabalho - Revista de Ciências Sociais, João Pessoa, v. 24, p. 27-57, 2006. ). Assim, o discurso homogeneizador do multiculturalismo neoliberal, com uma visão estereotipada da “medicina indígena” focada nas diferenças culturais, secundariza as desigualdades políticas, econômicas, sociais e também culturais (Ferreira, 2015FERREIRA, L. O. Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In: LANGDON, E. J.; CARDOSO, M. D. Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: UFSC, 2015. p. 217-246. ).

A população indígena utiliza concomitantemente diferentes recursos de saúde, articulando formas de cuidado via itinerários terapêuticos diversos (Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. Intencionalidad, experiencia y función: la articulación de los saberes médicos/Intention, experience and function: articulation of medical knowledge. Revista de Antropología Social, Madrid, v. 14, p. 34-69, 2005. Disponível em: <Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/RASO/article/view/RASO0505110033A >. Acesso em: 2 mar. 2018.
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). Porém o habitus de indígenas e não indígenas é diferente, implicando na necessidade de acordos para a resolução de possíveis conflitos (Engelhardt apud Pontes et al., 2014PONTES, A. L. et al. Reflexões sobre questões morais na relação de indígenas com serviços de saúde. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 337-46, 2014. DOI: 10.1590/1983-80422014222015
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).

Um dos aspectos que evidenciam essas diferenças é o fato de os indígenas serem solicitados a tomar decisões em situações clínicas a partir da perspectiva biomédica. Porém, a noção de saúde e doença para esses povos vai além dos aspectos biomédicos e sociais (Barreto et al., 2017BARRETO, J. P. L.; DOS SANTOS, G. M. A. Volta da Cobra Canoa: em busca de uma antropologia indígena. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 60, n. 1, p. 84-98, 2017. DOI: 10.11606/2179-0892.ra.2017.132068
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). Os elementos que orientam essa tomada de decisão sobre a saúde entre os indígenas não são diferentes dos utilizados em outras situações da vida. Além disso, essas resoluções são dependentes de valores relacionais de confiança com os profissionais e do contexto familiar e comunitário (Pontes et al., 2014PONTES, A. L. et al. Reflexões sobre questões morais na relação de indígenas com serviços de saúde. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 337-46, 2014. DOI: 10.1590/1983-80422014222015
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).

O paternalismo é hegemônico na prática médica brasileira e cubana, considerando a segunda a nacionalidade como a dos médicos que atuavam nas equipes objeto deste estudo. Essa prática reforça a ideia de restauração da saúde e prolongamento da vida, independente da vontade do indivíduo, assim subordinando o corpo e a pessoa aos saberes tecnológicos, contrariando a perspectiva indígena de que o compromisso com a qualidade de vida é maior do que a busca de cura (Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. Intencionalidad, experiencia y función: la articulación de los saberes médicos/Intention, experience and function: articulation of medical knowledge. Revista de Antropología Social, Madrid, v. 14, p. 34-69, 2005. Disponível em: <Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/RASO/article/view/RASO0505110033A >. Acesso em: 2 mar. 2018.
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).

Tal postura pode desrespeitar a autonomia do usuário, o que seria compreensível apenas se houvesse elementos suficientes para justificar a beneficência (Silva, 2010SILVA, H. B. Beneficência e paternalismo médico. Revista Brasileira de Saúde Materno- Infantil, Recife, v. 10, suppl 2, p. 419-425, 2010. DOI: 10.1590/S1519-38292010000600021
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). Orienta-se, na sociedade ocidental, a priorização do respeito à autonomia, com a tomada de decisão individual, mas essa relação tênue se apresenta com características diferentes na realidade indígena, na qual a autonomia pode não ser individual, mas da família ou da comunidade (Pontes et al., 2014PONTES, A. L. et al. Reflexões sobre questões morais na relação de indígenas com serviços de saúde. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 337-46, 2014. DOI: 10.1590/1983-80422014222015
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).

Além disso, o serviço de saúde indígena toma inevitavelmente como referência a Atenção Primária em Saúde (APS) e a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que deveriam se iluminar pelos preceitos de acessibilidade, longitudinalidade, integralidade, humanização, coordenação do cuidado e vigilância à saúde. Essa estratégia tem papel primordial na produção de cuidado, mas pode não ser adequada para realidades indígenas quando há a transposição de ações programáticas - como o planejamento reprodutivo -, devido a conflitos entre a ideia de planejar a reprodução e as expectativas dos povos indígenas em relação à fecundidade/natalidade.

Assim, para que o serviço de saúde produza cuidado não colonizador, a atenção diferenciada é fundamental, mas envolve uma multiplicidade de fatores na sua prática, entre eles a percepção dos profissionais de como esse processo é conduzido. Um dos elementos que pode evidenciar tal percepção é a comparação da experiência de trabalho em área indígena e não indígena, levantando questões para a construção de uma prática realmente diferenciada.

Apesar da existência de outros estudos nesse sentido, há pouco aprofundamento nos componentes que influenciam a perspectiva desses profissionais. Este artigo discute os aspectos envolvidos na atenção diferenciada ao planejamento reprodutivo, ao comparar o trabalho dos profissionais de saúde em área indígena e não indígena.

Métodos

As populações do Território Yanomami são assistidas por 37 polos bases e 200 postos de saúde, que se articulam com os serviços dos municípios da área. São 67 Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), com mais de 460 profissionais. Atualmente, grande parte dessas são compostas por médicos do PMMB33Dados de 2017 fornecidos pelo Responsável Técnico pela Epidemiologia e Sistema de Informações do DSEI Yanomami e Ye’kuana durante a XIX Reunião do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana..

Por se tratar de uma realidade específica em que a pesquisadora está inserida, este é um estudo de caráter exploratório com enfoque qualitativo do tipo Estudo de Caso Etnográfico (Martucci, 2001MARTUCCI, E. M. R. Estudo de caso etnográfico. Revista de Biblioteconomia de Brasília, Brasília, DF, v. 25, n. 2, p. 167-180, 2001.). Para a coleta de evidências, foram utilizadas entrevistas e técnicas de observação participante durante o ano de 2017. As entrevistas seguiram as seguintes questões: Quais elementos você acha que influenciam a sua abordagem de planejamento reprodutivo em área indígena? E quais elementos a diferenciam da atuação em área não indígena? As notas de campo sobre o acompanhamento do trabalho das equipes foram elaboradas durante as atividades de supervisão, a cada dois meses, no momento das visitas a diferentes comunidades que dispunham de médicos do PMMB.

Considerou-se, na seleção, aqueles profissionais que atuavam no período do estudo com interação mais próxima com os indígenas (de medicina, enfermagem e técnica em enfermagem) e que já haviam trabalhado também na Atenção Primária não indígena, proporcionando o objetivo de comparação desejado. Foram escolhidos dois de cada categoria a partir de perfis divergentes, considerando-se principalmente: sexo/gênero - não havia mulheres médicas, apenas enfermeiras e técnicas de enfermagem -; tempo de trabalho em área indígena; e quantidade e diversidade de polos bases no qual trabalharam. Esses foram os elementos centrais usados para captar maior diversidade de experiências. Não foram incluídos profissionais indígenas, porque o estudo tinha como foco o olhar do não indígena para evidenciar as contradições. Os sujeitos foram identificados por letras do alfabeto de forma aleatória. No Quadro 1, são apresentados os componentes do perfil dos entrevistados, com omissão de alguns detalhes pelo risco de identificação dos sujeitos:

Quadro 1
Perfil dos sujeitos entrevistados

As entrevistas foram realizadas após autorização da gestão local, de assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (CEP/UFPE) em seus locais de trabalho, contando com boa receptividade.

Após transcrição literal das entrevistas e da organização das notas de campo, foi feita leitura realçando o sentido que está em segundo plano. Realizou-se a ordenação dos materiais adquiridos e das evidências de modo sistemático, seguida pela análise propriamente dita, a partir do modelo de Análise de Conteúdo Temática, adaptação da técnica proposta por Bardin (Gomes, 2013GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 33. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. p. 79-108. ). Foram identificadas três categorias: diferença e desigualdade, similaridades e desafios.

Diferença e desigualdade

Essa categoria explora diferenças compreendidas pelos profissionais entre o trabalho com populações indígenas e com não indígenas, auxiliando no entendimento sobre como acreditam ser, na prática, o exercício da atenção diferenciada e os elementos que a influenciam. Diferença e desigualdade necessitam ser tratadas conjuntamente, porque o foco apenas na diferença pode desconsiderar a desigualdade presente em cada contexto.

A visão estereotipada da “medicina indígena”, focada nas diferenças culturais e não nas políticas, econômicas e sociais, mostra-se como um discurso homogeneizador do multiculturalismo neoliberal. E pode, na verdade, revelar um conceito de cultura fundado na diferença e descolado dessas desigualdades, desqualificando-as., de forma que se revelem como um processo histórico violento de contato com não indígenas, gerando o genocídio desse povo ao longo dos anos (Ferreira, 2015FERREIRA, L. O. Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In: LANGDON, E. J.; CARDOSO, M. D. Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: UFSC, 2015. p. 217-246. ), e mesmo diante de alguns avanços políticos, como as demarcações territoriais, a situação de desproteção se mantém. Por isso, há importância em discutir a perspectiva que orienta a abordagem dos profissionais, revelando o deslocamento de algo que é do âmbito da diferença para o da desigualdade, ou vice-versa (Barros, 2018BARROS, J. D’A. Igualdade e diferença: uma discussão conceitual mediada pelo contraponto das desigualdades. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 23, e230093, 2018. DOI: 10.1590/S1413-24782018230093
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). Nesse sentido, um dos aspectos percebidos como diferente foi a maior necessidade, em área indígena, da construção de uma relação continuada que possibilitasse o diálogo. Observou-se que os profissionais com mais tempo no mesmo território conseguiam ter maior confiança das mulheres. E em algumas situações, como no caso dos métodos de aborto antinatal, esse acesso às mulheres era difícil, o que talvez justifique este ser tema ainda escasso na literatura sobre os Yanomami.

Pierre Clatres (1978)CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. Pesquisas de Antropologia Política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. utiliza o termo poder coercitivo para aquele exercido pelo Estado para cobrança da obediência dos indivíduos; e poder não coercitivo e persuasivo para as sociedades sem Estado, como as indígenas, em que se sobressaem as relações de parentesco, a generosidade e a oratória.

Reforça-se, assim, essa ideia, representada na fala de D, ao trazer a importância do tempo e do interesse na relação entre profissional e usuária:

As mulheres indígenas, principalmente as Yanomami, pra você ganhar a confiança delas, requer um pouco de tempo. A partir do momento que ela vê que você é uma profissional bem instruída, bem interessada, ela vê que você tem aquele vigor de ajudar ela. (D)

Predomina, entre os profissionais que estavam sob observação e os entrevistados, a percepção de que a mulher indígena é mais submissa aos homens e ao coletivo do que as não indígenas. As relações de gênero mostram-se complexas nessa realidade e difíceis de serem interpretadas por meio das teorias feministas “ocidentais”. Mas algumas questões colocadas pelos profissionais condizem com o apontado nos coletivos de mulheres indígenas, como o Projeto Voz das Mulheres Indígenas, implementado pela ONU Mulheres (ONU Mulheres, 2018ONU MULHERES - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS MULHERES. Mulheres Indígenas: a voz das mulheres indígenas. Brasília, DF: ONU MULHERES BRASIL, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/mulheres-indigenas/ >. Acesso em: 1 abr. 2018.
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). Dentre esses, o incômodo com a baixa participação feminina na política e na tomada de decisões individuais e a violência doméstica, expressões essas, de desigualdade de gênero, que são compreendidas pelos profissionais como próprias da cultura:

Quando elas chegam pra equipe pra falar sobre isso [planejamento reprodutivo] é porque ela já entrou em acordo com a família e a liderança. […] e são sempre as mulheres que vão pra roça e os maridos só em casa, as mulheres sofrem mais do que eles. (A)

Lá o Yanomami, acho que é a etnia da mulher mais submissa ao homem. Ela é submissa à comunidade. Lá, eles vivem em grupo mesmo. O que um falar já tá falado. A liderança falou, pronto, não bate papo… elas não vão nem questionar nada. (C)

A e C, profissionais mulheres, trazem uma compreensão de que as mulheres indígenas sofrem mais do que os homens e que isso seria próprio da cultura. Porém observa-se em campo que essas percepções distintas são nocivas, na medida em que há envolvimento próximo com áreas não indígenas. Reforça-se, portanto, o sentido de não separar diferença e desigualdade na comparação entre atenção a indígenas e a não indígenas, principalmente, nesse processo contraditório de interação. Por outro lado, é identificada a possibilidade de mudança nas desigualdades de gênero e suas formas de expressão, a partir de iniciativas dos coletivos de mulheres indígenas, com organizações em todo o Brasil e no território Yanomami. Em algumas falas aparece:

Então, as mulheres estão, nessa agora, lutando pelos seus direitos também. E é um bom sinal porque elas antigamente não tomavam essa postura de querer esses medicamentos [planejamento reprodutivo] que são do nosso uso, do branco né. (D)

Nesse sentido, de comparação hierárquica e etnocêntrica, observa-se profissionais que consideram o modo de viver indígena como gerador de problemas, aumentando as dificuldades para o trabalho deles em área. Esse entendimento, frequentemente identificado em campo, pode levar a uma abordagem mais reticente e intervencionista, neste caso, em relação à contracepção:

Diz que é cultura né… E quando elas vão pra roça quem fica com a criança pequena já é outro irmão menor também. Aí, por isso elas vão vendo as dificuldades de estar engravidando direto. (A)

Se você não tem como criar dois, por que você vai ter oito? Acabam adoecendo… daí fica todo o impasse de quando vem pra cidade, dessa questão de quem vai ficar, quem vai cuidar. Então, assim, pra eles é uma dificuldade muito grande e eu acho que devia ter esse controle em relação à quantidade de índios na comunidade. (B)

Nas falas de A e B aparece uma preocupação com as mulheres e as crianças, mas que pode ser danosa ao supor que o diferente é ruim, minimizando a importância das desigualdades nas condições de vida, que são decorrentes da vulnerabilidade do território e da restrição de direitos, como traz E:

Agora, se houver mais comida, mais alimentação, eu acho que seria do mesmo jeito […] ela vai continuar igual. Eles nunca tiveram tanta comida. (E)

Segundo Coimbra Jr e Santos (2000 apud Coimbra JR; Santos; Escobar, 2005COIMBRA JR, C. E. A; SANTOS, R. V.; ESCOBAR, A. L. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. , p. 36), “Coeficientes de morbimortalidade mais altos […] fome e desnutrição, riscos ocupacionais e violência social são apenas alguns dos múltiplos reflexos sobre a saúde, decorrentes da persistência de desigualdades.”. Nesse sentido, as más condições de vida (território inóspito, conflitos com garimpeiros) seriam os verdadeiros problemas a serem enfrentados, e não o modo indígena de viver.

Assim, retoma-se os achados de Souza e demais autoras (2017SOUZA, F. M., CORREIA, J. e FERRAZ, M. H. Os direitos reprodutivos das mulheres indígenas: relação entre direitos individuais de coletivos. In: COLÓQUIO DO MUSEU PEDAGÓGICO, 12., 2017. Anais…, Vitória da Conquista: Museu Pedagógico UESB, 2017. ), de que as mulheres que vivem em reservas não demarcadas têm taxas de natalidade mais elevadas do que as que vivem em áreas demarcadas, pela necessidade de crescimento populacional para a manutenção do estado de luta do seu povo. Essa questão foi explicitada ao comparar o modo de atuação dos profissionais em áreas com maior ou menor inserção do garimpo, além de estar presente nos relatos. C e D, ao afirmarem que a desigualdade e a desproteção dos territórios influenciam a decisão sobre o planejamento reprodutivo. Essa percepção pode vir com o tempo, já que estes têm mais experiência:

Porque no lugar que tem garimpo a mulher vai ter o menino, criança vai lá pro garimpo e vai sofrer de pneumonia e talvez vai morrer. (C)

Mas, a resposta do indígena foi que nós matávamos mais do que eles, porque eles faziam isso (“infanticídio”) por conta da sobrevivência e os não indígenas, não. (D)

No que se refere à diferença, os profissionais relataram que trabalhar nesse contexto exigiria primordialmente considerar a cultura, o que está de acordo com os princípios da atenção diferenciada enquanto elemento norteador da atuação nessas realidades, para a construção de processos não danosos:

Respeitar, é porque nós somos invasores. Nós estamos indo até lá. Eu falo por duas vidas… aqui eu tenho uma vida, na floresta é outra. Então, quando eu chego lá, eu tô chegando na casa deles. Então eu tenho que respeitar como funciona lá. (D)

Entretanto, predomina a visão que o motivo maior para o respeito à cultura é a proteção dos profissionais de represálias da comunidade. Reações desta natureza até foram vivenciadas pelos médicos do PMMB, porém, considerá-las como a principal razão do exercício da atenção diferenciada pode gerar abordagens falsamente empáticas e, até mesmo, colonizadoras. Nas falas de B, D e F, percebe-se que essa preocupação é maior do que a possibilidade de gerar dano para as mulheres:

Mas a gente deixa bem à vontade, a gente não força não. Porque às vezes, quando a gente força e ela não se dá com o anticoncepcional porque há sangramento ou alguma coisa de errado, aí volta contra a equipe. (B)

A liderança tem essa voz forte também de não querer, porque a gente não pode chegar lá e fazer o medicamento sem o consentimento deles. Porque, caso dê alguma coisa errada, eles vão culpar o profissional, pelo uso do medicamento. (D)

Eu acho que sim, devem usar anticoncepcionais. Só que isso depende da cultura de cada comunidade que você está enfrentando. Porque não se pode impor. Porque, se impuser, em muitas comunidades, o médico não vai ser bem-visto, vai ser rechaçado pela comunidade. (F)

Similaridades

A categoria similaridades busca identificar aspectos comuns entre o trabalho em área não indígena e o trabalho nas comunidades do Território Yanomami, a partir das falas desses profissionais. Isso pode sinalizar como esses elementos são enxergados e como poderiam facilitar a empatia e o diálogo intercultural, inclusive considerando a importância dos povos indígenas na construção do povo brasileiro, como elaborou Darcy Ribeiro (1995RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido de Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.) em O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.

Essa perspectiva poderia revelar mais dificuldades entre os médicos cubanos, já que, com o extermínio dos indígenas em Cuba, esses povos tiveram menor participação na formação dos cidadãos do que os do Brasil. Entre as similaridades, também não aparece a identificação cultural e histórica dos profissionais brasileiros com os indígenas, numa negação do processo de construção da cidadania brasileira.

A vivência ratifica essa questão, mas as entrevistas trouxeram elementos que influenciam a prática. Parece existir uma noção contraditória de que os indígenas são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes dos não indígenas. Seriam iguais por também serem humanos, conceito fundamentado numa abordagem biomédica, com transposição de ações programáticas, como o Planejamento Reprodutivo.

Deveria ser a mesma. Deveria ser a mesma. Porque é uma unidade básica. O índio é um ser igual a nós, não índio, né? (B)

Isso desconsidera a ideia de que, nesse caso, trata-se do corpo em um cenário interétnico. Ao mesmo tempo que o napë (branco) é “inimigo”, é também fornecedor de objetos (Kelly, 2005KELLY, J. Notas para uma teoria do ‘virar branco’. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 201-234, 2005. DOI: 10.1590/S0104-93132005000100007
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), então a utilização de pílulas ou injeções pode implicar algum benefício, mas também a transformação em “branco”.

Essa complexidade parece não ser percebida na sua grandeza, dada as dificuldades de compreensão e de implementação da atenção diferenciada. Alguns profissionais como A, inclusive, referem que, apesar das diferenças e partindo de uma perspectiva hierárquica, a abordagem deve ser a mesma:

Já trabalhei em PSF (“Programa Saúde da Família”) e lógico que existe uma diferença. Aqui na cidade as mulheres já dão uma grande importância ao planejamento familiar, pois já inclui a educação, a dificuldade de criar um filho. Já em área, elas já não têm muito entendimento sobre isso e pra elas isso não influi muita coisa. A atuação é a mesma em área ou na cidade, nós levamos a importância do uso do preservativo e das DSTs e os métodos pra se cuidar. (A)

Surgem ainda comparações em relação ao modo de funcionar social e culturalmente chegando à conclusão de que apesar das diferenças, isso não mudaria a abordagem, porque as pessoas não indígenas também têm sua cultura:

São as formas de curar, as formas de rezas, as formas de dançar… igual nós, nós temos o forró, eles têm o… são culturas diferentes. (B).

Porém, o papel da cultura na diferenciação do cuidado deveria acontecer também entre não indígenas.

A essa questão, denominamos competência cultural, conceito que consiste na capacidade de ser resolutivo, considerando os aspectos culturais sem hierarquia. Isso envolve tanto ser sensível às crenças e expectativas das pessoas de qualquer território, como modular a organização dos serviços de saúde a cada realidade (Helman, 2009HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Tradução de Claudia Buchwitz e Pedro M. Garcez. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.).

Desafios

Os elementos acima discutidos contribuem com a próxima categoria, desafios. Foi unânime, tanto para os profissionais entrevistados como para os envolvidos, o quão desafiadora é a atenção a ser prestada a esse povo, influenciada por adversidades de acesso às áreas, alta rotatividade das equipes, formas distintas de atuação profissional, dificuldades intersetoriais, diálogo intercultural e a língua/comunicação.

A necessidade de diálogo intercultural era percebida, muitas vezes, não como algo instigante, mas como obstáculo:

O que não existe nos outros polos, essa questão de natalidade, isso praticamente não existe, porque isso está regido pela cultura, pelas lideranças da comunidade. Eles são os que decidem sobre essa questão de natalidade. Aí é difícil (F)

Nesse diálogo, a língua é identificada como fator desafiador para a atuação, reafirmando a necessidade de formação linguística das equipes. Entretanto há outras dificuldades de comunicação, entendidas como entraves no cotidiano:

A única dificuldade, o único impasse da gente é a respeito de como passar pra ela, que seria os intérpretes fazerem de maneira correta. Porque nossa maior dificuldade é essa, você passa uma coisa, eles entendem de uma forma, que possivelmente a indígena ou o indígena não vai entender da mesma forma que a gente tá passando. É muito minucioso trabalhar com índio. (B)

Pode ser vista também como um desafio necessário e possível a ser trabalhado tanto na perspectiva como na prática de alguns profissionais, C, por exemplo, fala a língua local e, em relação às questões reprodutivas, isso parece ser ainda mais importante:

Porque, como a gente tá ali 24 horas, cuidando, a gente acaba olhando. A gente fala... ‘Se tiver grávida tem que contar pra eu poder fazer o teu pré-natal.’ ‘Não, tô não’ ‘Sangue cua... (em Yanomami)..tantas luas. (C)

Além disso, sabe-se da necessidade de priorizar o atendimento dessas pessoas em seus próprios locais de vida, mas a dificuldade de acesso a áreas mais isoladas é entendida pelos profissionais como barreira para construir relações continuadas e próximas. Considerando que essa relação é critério essencial para construção de cuidados, essa dificuldade de acesso se coloca como empecilho de difícil resolução. É apontada, portanto, como fator limitante para abordagem mais adequada ao planejamento reprodutivo:

Então você tem que ficar monitorando ela pra que ela não vá pra outra comunidade naquele período, naquele dia. (B)

No Yanomami, a gente não tem um leque de opções pra métodos de prevenção de gravidez… no caso do Planejamento Familiar. A gente não tem porque… uso oral não tem condição. A mulher mora a cinco horas de viagem, todo dia você vai até lá entregar aquele anticoncepcional pra ela? (C)

Muitos indígenas às vezes são fixos em algumas regiões, mas não sabe até que tempo. Porque a terra deles tem um ciclo de plantação, às vezes eles mudam, então. (D)

B, C e D colocam o isolamento e a mobilidade das comunidades como limitantes para acompanhamento do planejamento reprodutivo. Essa afirmação questiona, inclusive, a compreensão dos profissionais sobre o que seria a atenção primária diferenciada, já que a diferenciação inclui pensar formatos de cuidado que se organizem de acordo com o modo de viver de cada povo e, de tal forma, considerem a dificuldade de acesso a eles. Isso interfere na organização e estruturação dos serviços em relação à APS mesmo em área não indígena, como aparece nas falas de B e D, considerando que a atenção primária em territórios indígenas precisa ser diferente da atenção primária não indígena, o que significa ser diferenciada:

Lá em Auaris, é um polo base, tem uma certa estrutura, mas pro atendimento de atenção básica, às vezes, a gente faz o impossível. (B)

Ela falou que a equipe que tá aqui é ruim. Eu falei uma pergunta pra essa pessoa: ‘Você já foi uma comunidade indígena? Numa comunidade mesmo… onde a cultura prevalece? Ou você foi numa comunidade onde tem uma pista grande e um posto bem estruturado?’ Digo: ‘Olha, esse é o problema.’ (D)

Outro desafio apontado foi a rotatividade das equipes, causando diferenças nas formas de atuação e dificuldades de construir relações com os profissionais, em especial no caso do planejamento reprodutivo, já que eles não estão fixos numa comunidade. Pontes et al (2014PONTES, A. L. et al. Reflexões sobre questões morais na relação de indígenas com serviços de saúde. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 337-46, 2014. DOI: 10.1590/1983-80422014222015
https://doi.org/10.1590/1983-80422014222...
) afirmam que, além da dificuldade descrita, esse processo é realmente atrapalhado pelo pouco tempo para diálogo durante os atendimentos, curto período de permanência das equipes nas comunidades e falta de acompanhamento longitudinal.

Assim, apesar de ter se modificado nos últimos anos, com equipes mais completas, principalmente com o provimento de médicos pelo PMMB que permanecem 15 dias seguidos em área, a experiência desses desafios ainda foi relatada por esses profissionais:

A dificuldade imensa que a gente tem, começa o planejamento familiar, daqui 15 dias pega um profissional que não tem a intimidade com essa situação, tá iniciando agora o trabalho e não vai dar continuidade. Na área indígena tem essa dificuldade, de continuidade. (B)

Como você vê, cada profissional tem sua visão. Eu passo lá sete dias, depois tenho que sair, aí entra outro colega, que aí tá com outra visão. Vai ter outras falas, vai passar diferente ou acha que não pode… porque são cabeças diferentes né. (D)

Além disso, as condições de vida e do território também seriam fatores desafiadores e não estariam sob a governabilidade dos profissionais e, sim, de outros setores:

Então, as indígenas já têm envolvimento com garimpeiros. Então, pra fazer um planejamento desse familiar com uma indígena gestante e vê realmente como vai fazer e inserir esse nosso planejamento né… é complicado. (D).

D reforça que a desproteção do território influencia a abordagem, apontando que a atenção diferenciada do planejamento reprodutivo é desafiadora, e que precisa considerar não apenas as diferenças, mas também a desigualdade. Portanto, é necessário reconhecer a diversidade cultural aliada ao conhecimento do território, combatendo iniquidades e relativizando as diferenças (Garnelo; Langdon, 2005GARNELO, L; LANGDON, E. J. A antropologia e a reformulação das práticas sanitárias na atenção básica à saúde. In: Minayo, M. C. S.; Coimbra Jr, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ , 2005. p. 133-156. ).

Considerações finais

A integridade dos povos indígenas pode ser ameaçada por uma interculturalidade funcional, na medida em que a relação de poder presente na abordagem do planejamento reprodutivo fortalece mais as diferenças e secundariza as desigualdades, como aparece neste estudo.

O exercício de comparação sobre o trabalho em área indígena e não indígena trouxe elementos que influenciam a abordagem desses profissionais. Esses vão desde a comparação baseada numa abordagem biomédica, passando pela confusão entre diferença e desigualdade que favorece a colonização e a negação dos direitos, até as compreensões dos profissionais sobre cultura, que atravessam o diálogo intercultural.

Tais aspectos tornam a atuação nessas áreas desafiadora, por ser associada a outros fatores conjunturais de negação de direitos e desproteção dos territórios. Esses poderiam ter tido análise mais aprofundada com uma vivência ainda mais longa da pesquisadora nessa realidade e uma maior quantidade e diversidade de profissionais entrevistados, o que pode ser apontado como uma limitação do estudo.

A justificativa da necessidade do uso de métodos contraceptivos sintéticos foi fundamentada no modo de viver das mulheres do Território Yanomami, entendido como gerador de problemas e, às vezes, até imutável. Apenas em poucas situações a compreensão da necessidade do controle da reprodução é permeada pelas más condições de vida que podem gerar ou reforçar carências e sugere estar relacionada a elementos como o tempo de experiência.

Ao mesmo tempo, sugere que refletir com os profissionais e as gestões sobre essas visões do que é similar, mas, principalmente, do que é diferente e do que é desigual, pode ser uma possibilidade para a construção de melhores caminhos para um cuidado diferenciado (em todos os seus aspectos) a essas mulheres indígenas e a esse povo, e não uma abordagem que fortaleça ou ignore a desigualdade.

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  • 1
    Casamentos cruzados são aqueles onde o cônjuge preferencial é um primo cruzado, ou seja, casamento preferencial com o filho da irmã do pai ou com a filha da irmã da mãe. Além de se caracterizarem como trocas, podem promover alianças entre grupos étnicos. (Pinto, 2016PINTO, N. S. Terminologia de parentesco e casamento djeoromitxi: um caso ngawbe na Amazônia? Anuário Antropológico, Brasília, DF, v. 41, n. 1, p. 123-151, 2016. DOI: 10.4000/aa.1744
    https://doi.org/10.4000/aa.1744...
    )
  • 2
    Nota: Aqui, prefere-se usar esse termo no lugar de “infanticídio”, já que este carrega uma valoração que pode ser ampliada. Para maior aprofundamento: Albert (2011)ALBERT, B. “Infanticídio”: Esclarecimentos e Comentários. In: Ricardo, C. A.; Ricardo, F. (Org.). Povos Indígenas no Brasil 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. p. 284-286. .
  • 3
    Dados de 2017 fornecidos pelo Responsável Técnico pela Epidemiologia e Sistema de Informações do DSEI Yanomami e Ye’kuana durante a XIX Reunião do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2021
  • Revisado
    03 Nov 2020
  • Revisado
    15 Jun 2021
  • Revisado
    04 Ago 2021
  • Revisado
    29 Set 2021
  • Aceito
    09 Fev 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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