Resumo
A saúde é um complexo de situações de condições de vida alinhadas a contextos e lugares no tempo. O processo de reparação a partir do entendimento ampliado da saúde é um conjunto de direitos, ações e medidas protagonizadas por diferentes sujeitos nas diversas dimensões da vida. Este artigo tem como objetivo analisar as percepções e ações de reparação direcionadas a camponeses que sofreram perdas materiais e simbólicas no decurso das obras da transposição do Rio São Francisco, em Sertânia, Pernambuco. Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa. Os sujeitos desta pesquisa foram camponeses maiores de 18 anos, sem especificação de sexo, residentes em três comunidades nas proximidades do canal Eixo Leste da transposição. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas nas comunidades e uma oficina participativa. Observou-se que há uma insuficiência no reconhecimento dos direitos de reparação pelos habitantes e, consequentemente, uma não efetivação das ações desenvolvidas nesse aspecto. As ações de reparação focaram compensações monetárias para a perda de bens materiais, porém sendo muitas vezes subdimensionadas ou até mesmo ausentes. É imprescindível que a reparação seja pensada na perspectiva da complexidade do caso, considerando todas as dimensões da saúde e da vida.
Palavras-chave:
Reparação e Compensação; Vulnerabilidade em Saúde; Saúde e Ambiente; Projetos
Abstract
Health is a complex of situations of living conditions aligned to contexts and places at a given time. The redress process based on the expanded understanding of health is a set of rights, actions, and measures carried out by different subjects in the different dimensions of life. This article aims to analyze the perceptions and redress actions directed to peasants who suffered material and symbolic losses during the transposition of the São Francisco River, in Sertânia, Pernambuco. This is a case study with a qualitative approach. The subjects of this research were peasants over 18 years of age, of without specifying gender, living in three peasant communities near the Eixo Leste of the transposition. Semi-structured interviews and a participatory workshop were carried out in the communities. An insufficiency in the recognition of reparation rights by the inhabitants and, consequently, a non-effectiveness of the actions developed to that end were observed. Remedial actions focused on monetary compensation from the loss of material goods, but were often undersized or even absent. It is essential that the repair be thought of from the perspective of the complexity of the case, considering all dimensions of health and life.
Keywords:
Compensation and Redress; Health Vulnerability; Health and Environment; Projects
Introdução
A saúde é o resultado de um complexo implicado nas condições de vida que estão relacionadas ao contexto do lugar e do tempo. Esses processos, individuais e coletivos, são representados por conjuntos de sistemas reais e simbólicos que, quando negativamente perturbados, podem produzir perda de autonomia e vulnerabilização. A fim de restabelecer as condições necessárias à sua reprodução social saudável, faz-se necessário a implementação de mecanismos compensatórios (Samaja, 1998SAMAJA, J. Epistemologia e epidemiologia: notas preliminares sobre a noção de ciência. In: ALMEIDA FILHO, N. et al. (Org.). Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 23-36.; 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.). Para tanto, é fundamental compreender a saúde de forma ampliada, ao considerar ela e a doença como processos de autorregulação da produção e reprodução da vida, não limitados a uma relação linear de causa e efeito, mas associadas a complexidade do ser humano em sua existência (Samaja, 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).
Um processo de reparação a partir do entendimento ampliado da saúde foi concebido por Maldonado (2018) como um conjunto de direitos, ações e medidas protagonizadas por diferentes sujeitos, levando em consideração as mais variadas dimensões da vida e os direitos da natureza e das pessoas vítimas de violências. A reparação integral é fundamental aos contextos e às diversas vulnerabilidades biogeográficas e humanas, que devem ser garantidas pelo Estado e pelos responsáveis públicos ou privados, por danos em suas dimensões (Maldonado, 2018).
Para compreender a perspectiva da reparação integral, Beristain (2009BERISTAIN, C. M. Diálogos sobre la reparación: ¿ qué reparar en los casos de violaciones de derechos humanos? Quito: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de Ecuador, 2009.) categorizou cinco dimensões que vão incidir sobre a vida: (1) Restituição: busca restabelecer a situação prévia ao dano, podendo ser compreendida ainda no retorno ao lugar de habitação, de bens materiais e processos de trabalho; (2) Indenização: dimensão mais difundida pela própria construção fragmentada, que não atende a complexidade da vida e da saúde, sobrevindo, principalmente, pela compensação pecuniária pelos danos ou prejuízos materiais e imateriais; (3) Reabilitação: pode e deve acompanhar serviços e ações que deem subsídios às vítimas na readaptação ao novo cenário, por exemplo a utilização de técnicas de memória coletiva, reforçando os laços da comunidade e de seus membros com sua história passada e suas projeções; (4) Medidas de Satisfação: podendo ser compreendida pelo argumento da verdade e da justiça no reconhecimento em público dos atos agressivos, promoção de comemorações tradicionais ou tributo às vítimas fatais; (5) Garantias de Não Repetição: associada à segurança de que os sujeitos não serão novamente alvo de violações. Essa dimensão se apoia principalmente em reformas judiciais, institucionais e legais.
Assim, a reparação tenta promover a diminuição das vulnerabilidades socioambientais advindas de práticas industriais ou construções de grandes empreendimentos, que resultam na negação de direitos à saúde, criando cenários de injustiças ambientais e iniquidades (Beristain, 2010BERISTAIN, C. M. El derecho a la reparación en los conflictos socioambientales: experiencias, aprendizajes y desafíos prácticos. Bogotá, DC: Ediciones USTA, 2010.). Acselrad (2010ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais-o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010.) caracteriza a injustiça ambiental como a exposição desigual de populações ao risco proveniente do modelo de acumulação de capital, penalizando ambientalmente os territórios desamparados historicamente e ainda em processo de vulnerabilização.
Para auxiliar na compreensão dessa complexidade, Samaja (2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.) propõe uma modelagem sistêmica, em que as condições de vida e de saúde se configuram como processos decorrentes da reprodução social, representada por cinco dimensões interdependentes: (1) biocomunal; (2) autoconsciência e conduta; (3) tecno-econômica; e (4) político-ecológica. Essas dimensões estabelecem entre si relações de interdependência e de interdefinibilidade, que caracterizam essas problemáticas como complexas (Samaja, 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.). Estudos realizados nos territórios de abrangência da transposição evidenciam processos de vulnerabilização ambientais, econômicas e sociais, que afetam a saúde de povos e de comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, camponeses), degradando, muitas vezes, seus modos de vida e sua autonomia (Baracho, 2014; Domingues, 2016DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio são Francisco: o desterro na vila produtiva rural baixio dos grandes (Junco). 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.; Bezerra, 2016BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.; Gonçalves et al., 2018GONÇALVES, G. M. S. et al. A transposição do rio São Francisco e a saúde do povo Pipipã, em Floresta, Pernambuco. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 909-921, 2018.).
A autonomia dos povos e das comunidades tradicionais permite que realizem seu trabalho e vivam sua vida de forma independente. Quando isso é rompido, não conseguem manter o modo de vida tradicional, ferindo a mais profunda dimensão: a sua existência. Ao tornar territórios e indivíduos tutelados pelo Estado ou por empresas privadas, como ocorre em grandes obras, decorre a impotência da reprodução social de seus modos de vida, rompendo com a liberdade e a soberania (Costa; Diniz, 2021COSTA, A. M; DINIZ, P. C. O. Territórios tutelados e processos de vulnerabilização: história social da transposição. In: SANTOS, S. E. B. et al. TransVergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética, 2021. p. 176.).
Dessa forma, este artigo objetiva identificar as percepções e ações de reparação de camponeses que sofreram perdas materiais e simbólicas no decurso das obras da transposição do Rio São Francisco, no município de Sertânia, Pernambuco.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa. Os sujeitos que se disponibilizaram a participar desta pesquisa foram camponeses maiores de 18 anos, de qualquer sexo, residentes em três comunidades camponesas (Cipó, Hortifrutigranjeiro e Vila Produtiva Rural Salão) localizadas nas proximidades do canal Eixo Leste da transposição do Rio São Francisco, bem como líderes comunitários, líderes de movimentos sociais e membros do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Sertânia, com relevante importância direta ou indireta na saúde das comunidades.
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecidos (TCLE). Foram realizadas uma oficina participativa e entrevistas semiestruturadas, que aconteceram no período de setembro a outubro de 2021 e tiveram duração média de uma hora, gravadas em áudio.
As comunidades do estudo estão localizadas no município de Sertânia, a 263 quilômetros da capital do estado de Pernambuco, Recife. Com área de 2.421,511 km2 e população de aproximadamente 35.207 habitantes, situa-se na mesorregião do Sertão de Pernambuco e na microrregião do Sertão do Moxotó, fazendo parte da bacia hidrográfica do rio que recebe o mesmo nome. A cidade de Sertânia está inserida no Eixo Leste da transposição do rio São Francisco, em um trecho onde a água transposta tem origem no lago da barragem de Itaparica, no município de Floresta (PE), passando pela cidade de Sertânia com destino a Monteiro (PB) e o Rio Paraíba (PB) (Castro, 2009).
Foram realizadas 10 entrevistas semiestruturadas, subdivididas nas três comunidades camponesas: quatro entrevistas em Cipó, duas entrevistas em Hortifrutigranjeiro e quatro entrevistas em Vila Produtiva Rural Salão. Participaram três pessoas do sexo masculino e sete do sexo feminino. As entrevistas foram transcritas e analisadas a partir da análise temática do conteúdo das falas, com base nos estudos desenvolvidos por Ceres Víctora (1991VÍCTORA, C. G. Mulher, sexualidade e reprodução: representação do corpo em uma vila de classes populares em Porto Alegre. 1991. 203 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1991.) e Víctora, Daniela Knauth e Maria de Nazareth Hassen (2000VÍCTORA, C. G.; KNAUTH, D. R.; HASSEN, M. N. A. Pesquisa qualitativa em Saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.). Os dados transcritos foram organizados e sistematizados em planilhas do Excel e documentos Word. As entrevistas foram realizadas nas residências dos participantes, mediante a definição prévia de dia e horário disponível para eles e para o pesquisador.
Também foi realizada uma oficina participativa na Vila Produtiva Rural Salão, com um total de 5cinco pessoas (quatro do sexo feminino e uma do sexo masculino). A oficina aconteceu em um espaço comunitário, localizado na própria comunidade, e foi utilizada a técnica de “mapa de sonhos” para sistematização das reivindicações de reparação pela comunidade (Soliz; Maldonado, 2012, p. 19). O mapa dos sonhos, conforme Diniz e Maldonado (2012), foi utilizado como instrumento na caracterização de demandas de reparação e justiça. Ele ilustra as reivindicações mais urgentes a serem implementadas na Vila Produtiva Rural Salão. Os dados da oficina receberam tratamento descritivo, organizando-se por meio de uma descrição resumida, anteposta por citações interpretadas como importantes e sistematizadas.
A pesquisa foi aprovada segundo a Resolução da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa nº196/96 na versão 2012, pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) do Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (IAM/FIOCRUZ). Para preservar a identidade dos sujeitos, foram utilizados codinomes de plantas nativas da Caatinga, a saber: Palma; Juazeiro; Coroa de frade; Mandacaru; Jurema; Facheiro; Catingueira; Flor de jitirana; Cumaru; Cacto.
Resultados e discussão
Percepções de reparação pelas comunidades: a insuficiência dos direitos
As demandas por reparação estiveram presentes em diversas falas, mas concretamente os afetados receberam insuficiente reconhecimento dos seus direitos de recebê-las. Houve situações em que as indenizações se deram de forma subdimensionada, não correspondendo ao valor real dos bens perdidos, conforme expôs Palma: “[...] veio uma indenização para ele e era pra ir receber em Custódia e a indenização era tão louca que se você pagasse o valor da passagem pra ir e voltar em Custódia pra receber o cheque, o cheque não cobria o valor que ia gastar” (Palma, em entrevista).
Em alguns casos, foi identificado a completa ausência de indenizações ou outro tipo de reparação, mesmo havendo perdas materiais passíveis de contabilidade, tais como: terras, criação de animais e casas danificadas e destruídas. Juazeiro relatou sobre este fato: “Não, não, não. Não consigo lhe falar não. Muita gente não recebeu a indenização e se preocupou muito, a gente mesmo do terreno lá da frente e desse aqui mesmo a gente não recebeu indenização de nada não” (Juazeiro, em entrevista).
Contextos de negação de direito, bem como de injustiça ambiental e social também foram identificadas em outras comunidades ao longo do canal da transposição, principalmente na relação de comunidades tradicionais com o grande empreendimento, como apontado nos estudos de Domingues (2016DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio são Francisco: o desterro na vila produtiva rural baixio dos grandes (Junco). 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.), Gonçalves (2019) e Bezerra (2016BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.). A sistematização desse processo de violação de direitos e vulnerabilização acompanha o modelo desenvolvimentista sustentado na lógica do capitalismo, em que em detrimento da retórica de progresso, oneram comunidades adjacentes a grandes obras. Neste contexto, medidas de reparação são essenciais e particulares a cada comunidade, diante dos danos sofridos e do seu desejo de reparar. A ausência ou insuficiência de reparação pode sobrepor vulnerabilidades anteriores, potencializando e/ou gerando novos processos de insegurança e injustiças no território (Beristain, 2010BERISTAIN, C. M. El derecho a la reparación en los conflictos socioambientales: experiencias, aprendizajes y desafíos prácticos. Bogotá, DC: Ediciones USTA, 2010.; Maldonado, 2013MALDONADO, A. Un indicador para el Sumak Kawsay. Quito: Clínica ambiental. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.altaalegremia.com.ar/Archivos-Website/Indicador_sumakawsay.pdf >. Acesso em: 5 jan. 2022.
https://www.altaalegremia.com.ar/Archivo... ).
O TransVergente, um programa interinstitucional formado a partir de instituições públicas de ensino e pesquisa, foi identificado no território como um movimento de reparação. Tem no seu arcabouço teórico-metodológico a proposta de desenvolver ações de Reparação Integral Comunitária que envolvem perdas materiais, simbólicas e de saúde, constituindo uma forma de resistência nos contextos de vulnerabilização (Gomes et al., 2021GOMES, W. S. et al. TransVergente: um programa de reparação integral comunitária. In: SANTOS, S. E. B. et al. TransVergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética, 2021.). Como reflexo da atuação do TransVergente, uma ação judicial por reparação foi aberta no Ministério Público Federal (MPF), bem como na Defensoria Pública da União (DPU), evidenciando melhorias na efetividade dos direitos da comunidade, como relata Coroa de Frade: “Depois desses tempo aí que atrasou, que nós procurou o pessoal [...] entrou com ação judicial no Ministério Público contra o Ministério da Integração, aí deu uma melhorada” (Coroa de frade, em oficina). Estas ações incidem na dimensão de medidas de satisfação no âmbito da reparação integral, diminuindo a sensação de abandono e restaurando a esperança e a confiança nas instituições públicas (Beristain, 2010BERISTAIN, C. M. El derecho a la reparación en los conflictos socioambientales: experiencias, aprendizajes y desafíos prácticos. Bogotá, DC: Ediciones USTA, 2010.).
No entanto, nem o MPF nem a DPU deram respostas concretas em ações jurídicas. O Programa também desenvolve momentos de discussão por meio de círculos de cultura, rodas de conversa e encontros das comunidades com agentes municipais, os quais têm por objetivo promover estratégias de fortalecimento das ações e serviços nos territórios. Há também o incentivo à recuperação da identidade cultural, à organização de feiras e aos artesanatos, preservando a autonomia dos sujeitos.
Outros movimentos têm sido pioneiros na busca por reparação em contextos de vulnerabilização, a exemplo a organização não governamental (ONG) Acción Ecológica no Equador, a qual tem desenvolvido ações de reparação para comunidades tradicionais vulnerabilizadas pela extração de petróleo na Amazônia Equatoriana. Em 2013, num contexto de devastação ambiental e processos de adoecimentos e mortes, a Clínica Ambiental foi construída por intermédio dessa ONG com perspectiva de reparação integral, propondo reparação sócio-ecossistêmica, perpassando medidas de solidariedade, cuidados em saúde, além de demandas e ações jurídico-legais (Maldonado, 2018).
No entanto, a implementação e efetivação dessas ações e projetos de reparação nos territórios codepende, em certa maneira, da estrutura política e social instauradas naquele contexto. No caso do Equador, o artigo 71 da Constituição diz: “a Natureza [...], onde a vida é produzida e realizada, tem direito de ser respeitada integralmente em todos os seus ciclos vitais, na sua estrutura como um todo, nas funções e processos evolutivos.” (Equador, 2008). A compreensão da natureza como sujeito de direitos configura outras perspectivas de reparação diante da proporcionalidade dos danos imputados, possibilitando a elaboração de estratégias compensatórias que promovam o reequilíbrio existencial de forma dinâmica e sistêmica.
A reparação nas comunidades camponesas de Sertânia adensa o campo pecuniário das indenizações e, como já descrito, é por vezes inconsistente e insuficiente. A concepção do dano pela transposição é fracionada e limitada, pois desconsidera a complexidade do território e suas interrelações com o ambiente, como expôs Mandacaru:
[...] Aí eles ficavam procurando calango, lagartixa, cobra, ô meu Deus do céu. Se preocupando, claro, né? É o bioma, tem coisa que tem que preservar mesmo, mas ficavam atrás disso e ninhozinho de passarinho e não pensava na população, o ser humano. [...] Não tá errado, né? Mas e o ser humano, o que foi que eles fizeram?. (Mandacaru, em entrevista)
Este fato coloca em evidência a percepção de reparação, que separa o humano da natureza e compromete o desenvolvimento de ações de reparação complexas e sistêmicas, dificultando o alcance de dimensões simbólicas que se estabelecem hierarquicamente de forma estrutural e funcional nas relações sócio-ecossistêmicas (Samaja, 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).
A restituição se torna uma das dimensões mais delicadas por tratar do retorno às condições originais antes da vulnerabilização. O alcance dessa categoria é um processo complexo por sua conjugação, pois mesmo que o indivíduo seja restituído de forma material, a dimensão afetiva o atravessa e uma formação conjunta é experienciada e exercida ao mesmo tempo. Jurema relata a impossibilidade desse retorno às condições anteriores à transposição, conforme fala: “Rapaz, certo que depois de um dano tão grande que eles causaram, ia amenizar, né? Porque trazer, trazer não trazia mais não. Depois de uma coisa perdida pra recuperar é...é complicado”. (Jurema, em entrevista)
Mandacaru aponta, ainda, para outras duas situações: a perda de terras férteis e a indenização irrisória por elas, não sendo suficiente para dar subsídio de recomeços; a outra, uma questão transgeracional, o qual é colocado o valor simbólico da terra e do trabalho em detrimento do valor monetário. Observa-se, assim, que a reparação integral conforme Beristain (2009BERISTAIN, C. M. Diálogos sobre la reparación: ¿ qué reparar en los casos de violaciones de derechos humanos? Quito: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de Ecuador, 2009.) não foi implementada, implicando na vulnerabilização de dimensões biocomunais, técnico-econômicas, da autoconsciência e a conduta ecológica dos indivíduos (Samaja, 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).
Eles diziam: “vamos dar ‘X’ e vamos pra justiça se não quiser e pronto”, é um reparo que não dá, né? Pra um pai de família, pra o homem que trabalha mesmo significa nada, é aquilo que eu te falei no início: “dinheiro não tem mais nada e terra também não” [...] Olhe, pra os mais jovens pode ser reparado com verba, né? Aqueles que foram pouco indenizados, mas os mais de idade acho que nada mais vai reparar, nada mais vai substituir o que a gente tinha não, nunca. (Mandacaru, em entrevista)
A compreensão e o desenvolvimento integral das medidas e ações de reparação devem formar estratégias que recuperem a dignidade das pessoas, promovendo autonomia, soberania, sustentabilidade e segurança (Breilh, 2014; Maldonado, 2018). A não realização dessas ações, ou sua insuficiência, muitas vezes estão ancoradas na compreensão do dano causado, refletido no campo jurídico e tangenciando a compreensão ampliada e complexa da saúde. É fundamental uma reparação sócio-ecossistêmica e individual que permita a recuperação dos processos protetores da saúde, guiados pela verdade e pela justiça (Maldonado, 2018).
A reparação realizada na Vila Produtiva Rural Salão, por exemplo, tem gerado desesperança e sensação de abandono pela inconclusão de obras e promessas feitas, conforme relata Facheiro: “A gente se acha numa situação de abandono, a gente não sabe até quando, se vai ser concluído se ali vai ficar daquele jeito, o meu medo é esse, que ali nunca tenha um amparo” (Facheiro, em entrevista). A narrativa de não pertencimento ao lugar e à casa se tornou algo marcante, e introduz a distinção do morar e o habitar. Sabe-se que o habitar é mais do que se abrigar, é reduto de significados e sentidos, é sentimento materializado. Ser retirado desse lugar implica um processo imbricado de significados e significantes que estruturam as relações do sujeito com o espaço, como se ver na fala a seguir: “Muito tem casa aqui, mas não é assim, morar, ter aquele amor, aquela terra não, muita gente ainda sofre um bocado”. (Cumaru, em oficina)
Além do desafio de recomeçar e criar laços, existe a insatisfação com as medidas de reparação que foram tomadas e a inexistência das ações de reabilitação. A reparação é reivindicada, por vezes, por meio do desejo da comunidade de continuidade da produção e reprodução social que existiam antes dos danos causados, não relacionado necessariamente a questões pecuniárias, mas subsidiada por cumprimento das promessas feitas, de medidas simbólicas e da elaboração de programas e políticas públicas efetivas que deem sustentabilidade, autonomia e soberania às comunidades, como aponta a fala de Mandacaru: “Depois, pode ser que daqui a 2-3 anos eu peça perdão pelo que eu tô dizendo hoje, mas até hoje...que eles só vão dar a alegria da gente se tiver água encanada na casa, como eles prometeram, 5 km do eixo”. (Mandacaru, em entrevista)
Pode-se constatar o descumprimento de promessas feitas pela transposição também na fala de Catingueira:
Porque era pra entregar de um jeito, e num foi do jeito que eles falaram... demoraram demais pra entregar as coisas a gente, nossas casas ficaram muito tempo fechadas aí se acabaram. Exigiram nós entrar nelas, cheio de espinhos, nós sofremo aqui dentro vis pra deixar elas limpas, cobra, é sofremos viu. (Catingueira, em oficina)
A entrega em estado precário das casas na Vila Produtiva Rural Salão caracteriza contexto de injustiça ambiental e de violação de direitos (Acselrad, 2010ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais-o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010.).
Este fato gera insatisfação quanto às medidas de reparação, conforme o seguinte depoimento: “Eu cheguei aqui só fiz entrar e disse: eu quero ir embora” (Flor de Jitirana, em oficina). Observa-se o não reconhecimento dos sujeitos como pertencentes ao lugar, e o sentimento de medo e insegurança em relação às dimensões da reprodução da vida. Essas novas vulnerabilizações se somam a processos anteriores presentes no território, vulnerabilizando ainda mais essas comunidades. Em nenhuma das três comunidades que compõem este estudo foram oferecidos suporte para recomeços dignos, como se identifica nas falas a seguir:
Aqui não tem oportunidade pra nada, aqui eu fico afastada, a gente não existe praticamente, você fala que mora aqui as pessoas não sabem. Pra fazer curso a noite é muito perigoso, sair daqui a noite, ali é um escuro horrível, então Eu queria ter a oportunidade de poder sair, fazer meus curso, voltar a fazer meus curso.. pra emprego também, se a arruma um emprego que o horário vai até tarde, como é que a pessoa vem no escuro danado. (Flor de Jitirana, em oficina)
A fala a seguir retrata a desterritorialização e reterritorialização (Haesbaert, 2004HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.), vivenciada por aqueles que foram obrigados a mudar e formar novos vínculos com a terra, o que implicou, muitas vezes, no abandono de práticas ancestrais e de sobrevivência, vulnerabilizando dimensões da vida como a autoconsciência, a conduta e a biocomunal (Samaja, 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.), além de introduzir contextos de insegurança alimentar e oneração da renda, como exposto por Coroa de frade em oficina:
Lá no sítio da gente era bom, porque aqui se faltar, quem nem tá hoje a carestia, lá no sitio, se nos tivesse morando lá no sítio, e faltasse um pedaço de carne, pra quem gosta de matar, pra quem tem pra comer também [...] se faltasse uma carne dentro de casa, ia pro mato, trazia um tue, que é o viado, trazia uma çariema, num faltava uma mistura, matava uma galinha, um bode, aqui não, se faltar isso aqui você não tem mais, não tem um bode pra comer,a não ser se comprar, uma galinha de capoeira... [...] hoje você num pode criar uma galinha. (Coroa de frade, em oficina)
Entre as três comunidades, duas (Cipó e Hortifrutigranjeiro) já tinham associações. A terceira comunidade estava, durante este estudo, em processo de organização. As associações comunitárias foram creditadas pelas comunidades como um dispositivo que tem força e representatividade nos espaços públicos para reivindicações de direitos e melhorias, como evidenciado a seguir: “É muito importante aqui na Vila, todo ambiente tem que ter uma associação, principalmente aqui, uma vila que já era para estar tudo organizadinho. Se tivesse essa associação a gente não estava passando por essas dificuldades, eu acho”. (Catingueira, em entrevista) Segundo Beristain (2010BERISTAIN, C. M. El derecho a la reparación en los conflictos socioambientales: experiencias, aprendizajes y desafíos prácticos. Bogotá, DC: Ediciones USTA, 2010.), a consciência do impacto negativo na saúde e na vida das pessoas é uma consequência percebida pelos comunitários, e as associações surgem, de certa forma, a partir desse contexto como estratégia de resistência e luta contra injustiças ambientais.
Caracterização de demandas de reparação e justiça ambiental - vila produtiva rural salão
Foram apontados como reivindicação de reparação: reforma do portão da comunidade, com a colocação do nome do local (Salão); irrigação do terreno, com a colocação de cerca para proteção da criação de animais (cabras, bodes, galinhas, bois); iluminação adequada nas vias públicas; espaços de lazer, como uma praça com equipamentos para exercícios físicos; reforma do campo de futebol; e uma clínica de atendimento em psicologia, com plantões semanais. O terreno irrigado reivindicado pela comunidade foi prometido pela transposição, no início do processo de desterritorialização das pessoas que moram na Vila Produtiva Rural. Um fato que chama atenção na produção do mapa dos sonhos é a reivindicação subdimensionada de reparação, realizada pelos comunitários.
Este problema pode estar relacionado ao sentimento de frustração pela pouca quantidade e precariedade das reparações realizadas. Além do sentimento, este fato pode desencadear processos de desunião e violência na comunidade, como evidenciado no estudo realizado por Maldonado (2018). A reparação precisa ser entendida como um processo fundamentado na verdade e na justiça, caracterizando-se como uma ferramenta de recuperação de direitos perdidos e de saúde, não apenas uma lista de itens a serem alcançados.
A não reparação de mecanismos essenciais para a reprodução social cria contextos de vulnerabilização e de injustiça ambiental que incidem na vida e em suas dimensões, como apresenta Samaja (2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.). Evoca-se a dimensão da autoconsciência e a conduta como uma das partes mais afetadas, por incidir no modo de vida dessas comunidades, que por serem tradicionais vivem sob outra cosmovisão e atendem a valores e crenças inerentes a sua construção histórica e social (Brandão, 2010BRANDÃO, C. R. A comunidade tradicional. In: COSTA, J. B. A.; LUZ, C. (Org.). Cerrados, Gerais, Sertão: comunidades tradicionais dos sertões Roseanos. Montes Claros: Intermeios, 2010. p. 347-361. Disponível em: <Disponível em: https://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/a%20comunidade%20trad160.pdf >. Acesso em: 5 jan. 2023.
https://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub... ).
As ausências criam hiatos na forma que os indivíduos se reproduziam em seu trabalho antes da desterritorialização e depois, pela dificuldade do acesso à terra e as possibilidades de criação de animais, incidindo nas dimensões técnico-econômica e biocomunal (Samaja, 2000SAMAJA, J. A. Reprodução Social e a Saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das ‘relações’ entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).
“Era pra ter atendimento psicológico [...] seria muito bom”. (Cacto, em oficina) Esta fala evidenciou a importância de se refletir acerca da abrangência dos problemas de saúde mental vividos pelas populações dos territórios vulnerabilizados pela transposição. O sofrimento mental não foi considerado para fins de reparação por esse grande empreendimento, sendo, então, uma das principais demandas das comunidades, ilustrado no mapa dos sonhos. Isso é reafirmado por outra fala: “Sobre a questão psicológica que tem muita gente que não tá com psicológico muito bom, tudo isso aí causou esses danos né?”. (Coroa de frade, em oficina)
Esse contexto, vale salientar, é consequência de ações insuficientes e ineficientes de reparação direcionadas para a comunidade. Das afetações provocadas pelos processos de vulnerabilização, a comunidade aponta a reforma do portão de entrada como uma ação de reparação, que diz respeito à dimensão de medidas de satisfação. Representa, possivelmente, a identificação e aceitação da identidade desse novo arranjo comunitário pelos indivíduos, que impõem ao sujeito a constância das lutas por transformações e formação de sentidos outros, no novo contexto de vida. Para alguns comunitários, esses desafios significam recomeçar e/ou readaptar as estratégias de sobrevivência, como podemos observar na fala de Flor de Jitirana:
Eu tive que sair de um lugar que eu já estava acostumada, que eu tinha meus amigos, tinha minha vida lá, né, pra vir cá, foi difícil de me adaptar, muita dificuldade de me adaptar aqui, conhecer gente nova, fazer tudo de novo, e também foi difícil tipo esse fato da distância, então eu me tranquei muito dentro de casa, não tinha muito o que fazer então minha vida realmente era só ir pra escola voltava, estudava, dormia ou então ia assistir um filme uma série e foi ficando nisso... e tipo ver minhas irmãs também na mesma situação, é bem complicado bem difícil, eu fico pensando elas vão acabar como eu. (Flor de Jitirana, em oficina)
Como se pode observar na fala de Flor de Jitirana, a falta de espaços de lazer na comunidade diz respeito tanto à dimensão da reabilitação como de medidas de satisfação. Segundo Berenstein (2009), isso dificulta a reordenação de si e a formação de vínculos com o território, sendo um agravante à saúde física e mental. Tais espaços também estão presentes como reivindicação no mapa dos sonhos.
Além disso, foi apontado pelos comunitários as inseguranças quanto à propriedade da casa onde moravam, como na fala de Cacto: “Quando chegou aqui na vila e nós viu que totalmente é uma realidade diferente da que nós vivia lá. Certo, aqui é nosso, quer dizer, entre aspas, né? Porque tem horas que a gente se sente como se não fosse, como se fosse só emprestado”. (Cacto, em entrevista) Isso compreende a reivindicação da casa no mapa dos sonhos e como isso afeta o modo de vida dos indivíduos, inviabilizando a plantação e a criação de animais por medo de serem novamente desterritorializados (Haesbaert, 2004HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.), como evidenciado, também, na fala de Cumaru:
O bom mesmo é você dizer assim: é meu, é seu, você pode fazer o que você quiser, né? Aí sim, porque aí a gente pode fazer sem medo A gente vai fazer um plantio, fazer uma coisa, aqui a gente fica com aquilo, né? Como...de uma hora pra outra, sei lá. Aquele trauma que acaba com as forças da gente querer crescer e ao mesmo tempo cair. (Cumaru, em entrevista)
O ressoar das afetações a partir do medo denota as transformações no modo de vida das pessoas, implicando em processos de adoecimento e sofrimento mental sustentados por uma reparação insuficiente, que não acomoda os meios de produção e reprodução da vida. Segundo Costa e Diniz (2021COSTA, A. M; DINIZ, P. C. O. Territórios tutelados e processos de vulnerabilização: história social da transposição. In: SANTOS, S. E. B. et al. TransVergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética, 2021. p. 176.), esses territórios passam a ser tutelados e, sob a égide do Estado, o ritmo e o funcionamento das comunidades são ditados conforme as regras e as condições impostas pelo poder público, perdendo a autonomia, característica essencial ao modo de vida tradicional (Brandão, 2010BRANDÃO, C. R. A comunidade tradicional. In: COSTA, J. B. A.; LUZ, C. (Org.). Cerrados, Gerais, Sertão: comunidades tradicionais dos sertões Roseanos. Montes Claros: Intermeios, 2010. p. 347-361. Disponível em: <Disponível em: https://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/a%20comunidade%20trad160.pdf >. Acesso em: 5 jan. 2023.
https://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub... ).
Considerações finais
É fundamental que a proposta de reparação integral seja adotada na saúde coletiva como um aspecto da promoção, proteção e do cuidado em saúde, principalmente nos territórios onde se projetam intervenções de grandes empreendimentos.
A reparação integral de comunidades necessita incorporar a compreensão da complexidade da saúde, não apenas ocorrer a partir do dano no tempo presente ou pretérito, ou seja, a partir do ato transgressor, desconsiderando as reverberações dos danos produzidos e se configurando como um pensamento reducionista.
A categoria da reprodução social contribuiu para a compreensão da determinação social da saúde no território, permitindo evidenciar melhor os processos de vulnerabilização ocorridos. Traduzida em uma matriz de variáveis consideradas em diversos níveis hierárquicos de observação, a reprodução social permite identificar e orientar ações de reparação integral de forma profunda e complexa.
Após mais de 14 anos do início das obras, a população ainda sofre com as injustiças ambientais sem as devidas reparações materiais, simbólicas e de saúde. As indenizações financeiras, âmbito em que se concentrou a maior parte das medidas de reparação, foram insuficientes e indignas. Na reparação material também foram identificados agravos, como a entrega de casas danificadas, provocando mais tristeza e sofrimento. Esses processos de vulnerabilização, que se configuram como injustiças ambientais, acionam novas vulnerabilidades socioambientais que se somam às antigas, gerando mais exclusões sociais e desigualdades.
O desamparo sentido pelos entrevistados, flagelo que avança sob os territórios tutelados, não permite mais ao camponês ser quem ele sempre foi, pois foi transformado em refém do medo e da insegurança. O medo, nessas circunstâncias para essas comunidades, é um sentimento novo que desestabiliza as relações de convivência solidária de outrora. Na Vila Produtiva Rural Salão de Sertânia (PE), todos têm medo de perder alguma coisa, mesmo tendo pouco. Esse fenômeno implica uma partição, um processo de individualização e de desconfiança, que aumenta o desamparo pela perda do pertencimento a um modo de vida que foi profundamente violado.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
02 Out 2022 - Aceito
12 Ago 2023