Resumo
Embora tenha se tornado uma “pandemia” (do grego, pandemías , “todo povo”), a covid-19 é vivida de diferentes maneiras, e o risco de infecção e as medidas preventivas não são nem um pouco equivalentes entre a população. Trata-se de um processo social multiforme, cujos sentidos variam enormemente, sobretudo entre os portadores de comorbidades, os quais são mais vulneráveis ao coronavírus. Quando analisada empiricamente, a covid-19 desvela uma multiplicidade de vivências e significados, que colocam sob suspeita as categorias (supostamente) universais de “pandemia”, “isolamento social”, “morte”, e assim por diante. A maior crise sanitária e humanitária deste século possui muitas dimensões, que são produzidas em contextos sociais específicos, de acordo com subjetividades e práticas variadas. Dessa maneira, partindo de depoimentos pessoais, a presente pesquisa traz a lume as experiências singulares de um doente renal crônico, com o propósito de analisar os desafios de se fazer hemodiálise antes e durante a pandemia, cotejando a “passagem” de um mundo sem coronavírus para um mundo com coronavírus. Pois compreender os impactos do coronavírus na vida de alguém que já estava envolto por alguma perturbação grave, permite acessar uma outra realidade da covid-19, menos global e mais local, mas tão crucial quanto qualquer outra.
Palavras-chave:
Doença Renal Crônica; Hemodiálise; Pandemia de covid-19
Abstract
Although it has become a “pandemic” (from the greek, pandemías, “all people”), covid-19 is experienced in different ways, with the risk of infection and preventive measures being not at all equivalent among the population. It is a multifaceted social process, the meanings of which vary enormously, especially among those with comorbidities, who are more vulnerable to the coronavirus. When analyzed empirically, covid-19 reveals a multiplicity of experiences and meanings, which place the (supposedly) universal categories of “pandemic”, “social isolation”, “death”, and so on. The biggest health and humanitarian crisis of this century therefore has many dimensions, dimensions that are produced in specific social contexts, according to varied subjectivities and practices. Thus, based on personal testimonies, this research brings to light the unique experiences of a chronic kidney patient, with the purpose of analyzing the challenges of undergoing hemodialysis before and during the pandemic, comparing the “passage” of a world without coronavirus for a world with coronavirus. Because understanding the impacts of the coronavirus on the life of someone who was already surrounded by some serious disturbance, allows access to another reality of covid-19, less global and more local, but as crucial as any other.
Keywords:
Chronic Kidney Disease; Hemodialysis; covid-19 Pandemic
Introdução
Amiúde, os devires da vida nos causam inúmeros sofrimentos. Por mais que tentemos resistir, fortificando nossos corpos e rechaçando os males que nos ameaçam, cedo ou tarde, sucumbimos diante de uma situação penosa que coloca à prova nossa saúde, bem-estar e segurança. Vivemos sob o risco de adoecer e morrer; os reveses da existência nos acometem em diferentes graus, segundo diversas figurações (uma dor na lombar, um câncer na laringe, um quadro de depressão…), sendo eles constituidores, porém, das relações que estabelecemos com o meio. A “existência” é o domínio, portanto, do prazer e desprazer, da dor e apatia, da jovialidade e velhice, de modo que para compreendê-la com justeza é necessário reconhecer que tudo varia conforme a atravessamos. Esta é, a meu ver, a principal lição que Georges Canguilhem ( 2012CANGUILHEM, G. O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. , p. 183) nos legou: “viver, já para o animal e com mais razão ainda para o homem, não é somente vegetar e se conservar, é enfrentar riscos e triunfar sobre eles”. Em outras palavras, não há nada estático e passivo em nós; sob ou sobre a superfície da pele, as transformações são incessantes, pois certo dinamismo nos anima, ensejando distintas formas de superar os males que a própria vida engendra. Viver é movimento.
Dentre os muitos desafios que enfrentamos, a doença é certamente um dos principais. Ela integra, junto ao nascimento e a morte, aquilo que Marc Augé (2016) denomina como “eventos elementares”: fenômenos que se encontram no cruzamento do orgânico e cultural, individual e social, sendo simultaneamente universal e singular em suas manifestações. As maneiras pelas quais lidamos com o adoecimento não são arbitrárias, espontâneas, mas seguem uma dada ordem, estruturada por regras e proibições que buscam exorcizar a doença, suprimindo os perigos que guarda tanto para o enfermo quanto para a sociedade em geral (Douglas, 2014DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2014. ). Tal ordem, por outro lado, não é regida por leis imutáveis: a doença é um acontecimento que se dá no dinamismo da vida, e ao lidar com ela, a cultura é igualmente dinâmica. “O ser vivo não vive entre leis, mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis”, nos lembra Canguilhem ( 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 139). Se cedo ou tarde sucumbimos, é porque o meio nos “trai”, isto é, se movimenta e se diversifica, podendo arrancar de nós aquilo que chamamos de “saúde”. “Nada acontece por acaso, mas tudo ocorre sob a forma de acontecimentos. É nisso que o meio é infiel. Sua infidelidade é exatamente seu devir, sua história” (Canguilhem, 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 139). Exorcizar a doença, nesse sentido, é reconquistar o meio no qual a vida se inscreve, tornando-o habitável outra vez, segundo novas leis – biológicas e sociais – seguras. Viver é confiar.
Sem dúvida, a pandemia de covid-19 tornou-se o mais inesperado acontecimento dos últimos anos. O espraiamento do coronavírus ao redor do globo mostrou o quanto nós estamos “no meio de um mundo de acidentes possíveis” (Canguilhem, 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 139), que colocam em xeque qualquer presunção que possamos ter de saúde e bem-estar “eternos”. Evidentemente, já houve outras epidemias e pandemias (McMillen, 2016MCMILLEN, C. Pandemics, A very short introduction. New York: Oxford Press, 2016. ). Embora tenha precedentes, no entanto, a covid-19 segue tendo contornos singulares, seja do ponto de vista epidemiológico, sanitário ou cultural. Ela impôs novas formas de vivência, alterando significativamente os padrões de socialização até então aceitos. O toque, a aproximação, o respirar o mesmo ar, enfim, o partilhamento de corpos/espaços foi suspendido em benefício das medidas de prevenção contra o contágio; as antigas maneiras de se relacionar tornaram-se perigosas, e o meio – povoado por criaturas invisíveis – virou suspeito, transformando-se fonte de medo e incerteza. Ao mesmo tempo, indivíduos, grupos e instituições passaram a se organizar de acordo com novas regras de convívio e práticas de cuidado (isolamento e distanciamento sociais, lockdown , home-office , uso de máscara, desinfecção de objetos e superfícies, vacinação etc.). Apesar das privações e dos pesares, a covid-19 revelou-se um catalisador de ações e relações originais 22 E outras nem tão originais, visto que a covid-19 também provocou o recrudescimento de velhas políticas e práticas segregacionistas, desigualitárias e colonizadoras. Como aponta Judith Butler ( 2022 ), as configurações históricas tradicionais (burguesas, patriarcais, nacionalistas etc.) moldaram sobremodo as concepções e comportamentos adotados contra o coronavírus. , tributárias das representações que o humano “faz de suas possibilidades, de suas necessidades e [que], para dizer tudo, deve-se ao fato de ele se representar como desejável, o que não se separa do conjunto dos valores” (Canguilhem, 2012CANGUILHEM, G. O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. , p. 153). Viver é ordenar 33 Movimento, confiança e ordem são três aspectos que explicam o vitalismo de Canguilhem ( 2012 , 2018 ). Por ora basta dizer que, seguindo este autor, eu concebo o vivente em meio a um mundo de contingências (biológicas, sociológicas etc.), possuindo ele a consciência e a habilidade de sobrelevar os problemas que lhe são impostos, construindo, assim, uma confiança na vida mediante as normas que estabelece. .
Valores: eis um importante tópico a ser considerado se quisermos abordar a covid-19 sob uma perspectiva antropológica. Pois valores são culturais, e pandemias são moduláveis de meio para meio; “possibilidades”, “necessidades” e “desejos” são parte de uma “economia moral da vida” (Fassin, 2012FASSIN, D. O sentido da saúde: antropologia das políticas de vida. In: SAILLANT, F.; GENEST, S. (org.). Antropologia médica: ancoragens locais, desafios globais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. ). E mais: são coisas atravessadas por desigualdades, injustiças e violência. Para Jean Segata ( 2020SEGATA, J. covid-19, biossegurança e antropologia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 26, n. 57, p. 275-313, 2020. , p. 288), apesar de a covid-19 e as medidas de prevenção serem universais, “situações locais de injustiça e de vulnerabilidade social e as próprias experiências de saúde e doença ou aquelas de risco e cuidado tensionam e limitam essa universalidade”. O meio impõe desafios, sim, porém de tipos e graus diferenciados, consistindo em muitas representações que os viventes fazem dele. À hegemonia do coronavírus, se opõe uma heterogenia de experiências individuais e sociais que carregam, frequentemente, maior suscetibilidade à infecção viral. Trata-se dos idosos, pobres, negros, encarcerados, imigrantes, deficientes, LGBTQI+, “assim como todas aquelas [pessoas] com doenças preexistentes e que têm alguma condição médica preexistentes” (Butler, 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. , p. 130). Meu foco aqui são precisamente as últimas; mais especificamente, os portadores de doença renal crônica (ou DRC, para facilitar). Abordo não a covid-19 em si, mas as convergências entre ela e a cronicidade, a fim de verificar quais as necessidades e possibilidades dos doentes renais crônicos que, em circunstâncias pandêmicas, passaram a viver uma vida ainda mais precária e vulnerável (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. , 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ; Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , 2023DAS, V. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp, 2023. ). Desse modo, almejo, como sugere Veena Das ( 2020a DAS, V. Encarando a covid-19: meu lugar sem esperança e desespero. DILEMAS: Revista de estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro, 1 jun. 2020a. Dossiê: Reflexões na pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-26 . Acesso em: 17 jan. 2022.
https://www.reflexpandemia.org/texto-26... , p. 4), “evidenciar as conexões entre experiências cotidianas de provisão de saúde e gestão de crises como a pandemia de covid-19”, tendo em vista também que “não se deve deixar uma crise sem crítica” (Fassin, 2020 FASSIN, D. Pensando criticamente sobre crises. DILEMAS: Revista de estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro, 2020. Dossiê: Reflexões na pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-69 . Acesso em: 17 jan. 2022.
https://www.reflexpandemia.org/texto-69... , p. 1).
Para tanto, me debruço sobre os depoimentos pessoais de Marcos 44Nome fictício. O interlocutor assinou o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido. , 30 anos, paciente de hemodiálise há quase uma década, cuja trajetória de vida acompanho desde 2018 – ano que iniciei minha etnografia na clínica onde ele realiza tratamento, na cidade de São Paulo/SP (Corrêa, 2021aCORRÊA, P. Entre veias e fios: uma etnografia na hemodiálise. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, 2021a. ). Meus intercâmbios com Marcos já resultaram em um outro trabalho (Corrêa, 2021b CORRÊA, P. Isolamento, solidão, morte: os dramas de ser doente renal crônico em tempos pandêmicos. Pensata, Guarulhos, v. 10, n. 2, p. 29-48, 2021b. Dossiê: Pandemia, precarização e desigualdades. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/pensata/article/view/13025 . Acesso em: mai. 2022.
https://periodicos.unifesp.br/index.php/... ), centrado, em grande medida, em suas experiências como paciente hemodialítico antes e durante a pandemia. Após o início desta, muitas de nossas conversas, por motivos óbvios, passaram a ser via WhatsApp, e só recentemente tive a oportunidade de revê-lo pessoalmente, em maio de 2023. O presente trabalho deriva, então, desta última conversa que tivemos, e articula antigos fatos aos novos desdobramentos da sua experiência enquanto doente renal crônico – desdobramentos que se deram em um momento de “afrouxamento” das medidas de prevenção, bem como diminuição nos níveis de infecção e mortalidade por coronavírus no Brasil.
Se a experiência, diz Giorgio Agamben ( 2005AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. , p. 22), “tem o seu necessário correlato não no conhecimento, mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto”, o que tenciono fazer, em suma, é restituir ao Marcos uma autoridade, uma voz, com o propósito de iluminar outras narrativas acerca da covid-19, “seguindo a noção de que o cotidiano é o lugar onde a vida e morte tomam forma, entre a concretude do corpo e a não menos importante concretude das relações sociais, dos enquadramentos discursivos e das instituições” (Soneguet, 2022SONEGHET, L. A normalidade crítica do cotidiano diante do adoecimento e da morte. Anuário antropológico, Brasília, DF, v. 47, n. 2, p. 205-222, 2022. , p. 220). Por outro lado, não poderia fazer isto sem tratar da vida do interlocutor antes da eclosão da pandemia: coronavírus e doença renal, mostrarei, não podem ser apreendidos separadamente; no fundo, são parte de uma mesma “crise crônica” que deve ser vista não como “uma situação explosiva de curto prazo, mas uma circunstância muito mais duradoura e persistente. Não é um momento de mudança decisiva, mas uma condição” (Vigh, 2008VIGH, H. Crises and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethos: Journal of Anthropology, Abingdon, v. 73, n. 1, p. 5-24, 2008. , p. 9, tradução nossa).
Âncora
Reencontrei Marcos em 1º de maio de 2023, Dia do Trabalhador, numa praça de alimentação do shopping próximo à clínica onde faz tratamento, logo após o término da sua sessão de hemodiálise, às 16:00 55Sinteticamente, podemos dizer que existem três processos terapêuticos para a DRC: (1) hemodiálise: técnica mais comum em que, por meio de uma fístula ou cateter (colocado no braço ou no peito), o sangue é filtrado por uma máquina; necessita-se frequentar a clínica ao menos três vezes por semana; (2) diálise peritoneal: através da membrana peritoneal, insere-se um cateter na parte inferior do abdômen, podendo ser realizada em casa pelo próprio doente ou terceiros; e (3) transplante renal crônico: é a substituição dos rins adoentados por um saudável vindo de um doador vivo ou morto, não anulando, contudo, os cuidados terapêuticos. . Não o via pessoalmente desde março de 2020, e, apesar do tempo transcorrido, ele mudou muito pouco em termos físicos, sendo praticamente o mesmo rapaz franzino, de semblante cansado, que encontrei pela primeira vez nos idos de 2018.
Digo “cansado” porque, dentre os vários efeitos negativos da hemodiálise relatados, o cansaço é um dos principais. Ora, Marcos passa por três sessões de diálise semanais, cada uma com cerca de quatro horas de duração, nas quais sente regularmente tonturas, dores de cabeça, cãibras, enjoos e tédio; ele segue uma dieta alimentar altamente restrita, não podendo ingerir alimentos e líquidos em excesso, tampouco consumir álcool ou tabaco; qualquer esforço que realiza causa fadiga e o próprio feriado, Dia do Trabalhador, no final das contas, lhe é uma data sem descanso. De imediato, fica patente o quanto a hemodiálise é paradoxal: o mesmo tratamento que permite aos doentes continuar vivendo, também os enclausura numa rotina monótona de regras e proibições (Corrêa, 2021aCORRÊA, P. Entre veias e fios: uma etnografia na hemodiálise. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, 2021a. , 2021b CORRÊA, P. Isolamento, solidão, morte: os dramas de ser doente renal crônico em tempos pandêmicos. Pensata, Guarulhos, v. 10, n. 2, p. 29-48, 2021b. Dossiê: Pandemia, precarização e desigualdades. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/pensata/article/view/13025 . Acesso em: mai. 2022.
https://periodicos.unifesp.br/index.php/... ). Embora Marcos deseje ter um emprego, por exemplo, ele não consegue “ conciliar os horários de trabalho . As pessoas entenderem que durante quatro horas, na segunda, quarta e sexta, eu não estaria disponível [para trabalhar]. Embora Marcos deseje viajar para outros lugares do país, ele não consegue, se for por” um longo período. Apesar de ser diálise em trânsito […] tem todo um protocolo que tem que seguir ” 66Adoto o itálico nos registros de fala do interlocutor. . Tudo se passa como se a hemodiálise fosse um compasso existencial: ela dá o tom, marca o andamento dos seus afazeres, ditando o que ele pode ou não fazer, o que pode ou não comer, o que pode ou não beber… Aquilo que impede Marcos de morrer é, simultaneamente, o que constrange sua liberdade de viver.
A propósito, liberdade é uma questão capital para Marcos. Melhor dizendo, ela é o ponto primordial, pois para quem acabara de fazer 30 anos 77 No Brasil, a maior parte da população renal crônica está na faixa etária de 45-64 anos (41.5%), seguido pelos pacientes com mais de 65 anos (35%) (Neves et al ., 2020 ). Nesse sentido, a pouca idade de Marcos o distingue da maioria dos doentes renais crônicos, refletindo no modo como ele experimenta a DRC. , trabalhar e viajar são aspirações, atividades básicas para se firmar uma autonomia. Ele até chegou a trabalhar em livraria, cinema e banco; fez e continua fazendo viagens curtas, dentro dos limites de São Paulo. Porém, ainda sente uma falta de autonomia para realizar aquilo que lhe satisfaz, isto é, colocar em prática o que julga ter valor na vida, sem depender excessivamente dos outros a sua volta, a fim de evitar “o desgaste da base da vida social: a interdependência” (Soneghet, 2022SONEGHET, L. A normalidade crítica do cotidiano diante do adoecimento e da morte. Anuário antropológico, Brasília, DF, v. 47, n. 2, p. 205-222, 2022. , p. 206). Se Marcos atualmente cursa Propaganda e Marketing numa faculdade particular, por exemplo, cogitando trabalhar como professor algum dia, é “ porque dar aula se encaixaria na minha rotina de diálise, porque você não dá aula todo dia, então acho que seria uma boa ideia dar aula ”. Esta maneira de pensar ilustra como os doentes renais crônicos adaptam suas vidas à hemodiálise, e não o contrário: é por ser uma atividade conciliável com o tratamento, que Marcos considera plausível virar professor, podendo então, quem sabe, adquirir uma maior independência profissional no futuro. A busca por autonomia, portanto, é uma luta contra as privações impostas pela DRC, que “afetam profundamente as faculdades corporais de agir efetivamente no mundo e, com isso, o próprio senso de subjetividade: o sujeito se sente um objeto fixo no espaço, incapaz de se mover e de se ‘libertar’” (Soneghet, 2022SONEGHET, L. A normalidade crítica do cotidiano diante do adoecimento e da morte. Anuário antropológico, Brasília, DF, v. 47, n. 2, p. 205-222, 2022. , p. 206). Marcos vive como quem “sofre de alguma coisa a menos (que escapou dele ou que lhe foi subtraída) que é preciso que lhe restituam” (Laplantine, 2010LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo: Editora WFM Martins Fontes, 2010. , p. 98, grifo do autor). Para aprofundar este ponto, é necessário verificar o que Marcos entende por “doença renal crônica”.
Doenças crônicas, ou cronicidade, já foram definidas de diferentes maneiras. Contudo, uso aqui a definição do próprio Marcos de doença renal, a meu ver mais precisa, porque concreta, e seguramente mais poética do que aquelas elaboradas pelos estudiosos 88 O que é “cronicidade”? Embora haja diversas abordagens e sentidos para ela (Barsaglini; Portugal; Melo, 2021 ; Bury, 2011 ; Canesqui, 2007 ; Honkasalo, 2001 ), prefiro deixá-las de lado por enquanto, com o intuito de fazer reverberar a experiência de Marcos em primeiro lugar. Como assinala Das ( 2023 , p. 251), “a questão não é só de significado, mas também de tentar entender o que é o ser dessa entidade (doença, enfermidade) que parece ter uma relação tão incômoda com a própria experiência e uma necessidade de encontrar autorização para ‘sua’ realidade”. . Segundo ele, “ a doença renal às vezes é uma âncora que puxa você pra baixo e depois deixa você nadar um pouquinho, sentir o gostinho da superfície, mas ela te puxa de volta. Fica nesse meio-termo, deixando você um pouquinho livre, puxando você pra baixo ” . A metáfora a que recorre Marcos indica o modo como ele experimenta a DRC, modo igualmente influenciado pela dinâmica da hemodiálise. “ Sentir o gostinho da superfície ” (ser autônomo, independente) é o que ele deseja. E seja pelos mal-estares e sofrimentos ocasionados pela enfermidade, seja pela rotina cansativa do tratamento, ele nem sempre consegue emergir. Vê-se assim que a situação dos portadores de DRC é mais ambígua do que se pode pensar, visto que a hemodiálise, árdua e constante, é fator de sofrimentos, afetando negativamente o corpo dos enfermos em muitas dimensões, pessoal, profissional etc. “ A diálise tirou um pouco da minha liberdade, digamos assim, do que eu podia fazer ou do que eu não podia fazer ”. Evidentemente, a hemodiálise é para muitos o único tratamento disponível e válido – não há dúvidas quanto a isto. A questão em jogo é outra, a saber: para compreender o que é “ser saudável” de acordo com um doente renal, devemos nos voltar não para a hemodiálise em si, e sim para a “experiência que os homens têm de suas relações de conjunto com o meio” (Canguilhem, 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 58).
Ou seja, é necessário encarar a vida de Marcos em sua totalidade, questionando o que ele perde quando ancorado e o que ganha ao romper a superfície. O que perde, já vimos, é a liberdade. De quê? De viver como se deseja (trabalhando, viajando), ou ainda, de viver livre do que não se deseja (sessões dialíticas, dieta). Feito duas faces de uma mesma moeda, tanto a DRC quanto a hemodiálise contribuem para uma vida de “déficits” e cansaço, diminuindo as chances de independência. Ambas encerram privações; qualquer abordagem que se limite a esses aspectos negativos não dá conta da experiência relatada por Marcos. Atentemos, pois, para outras questões. Como propõe Reni Barsaglini ( 2021BARSAGLINI, R. Experiência: fundamentos conceituais e a abordagem socioantropológica em saúde e cronicidade. In: BARSAGLINI, Reni; PORTUGAL, S.; MELO, L. (org.). Experiência, saúde, cronicidade: um olhar socioantropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. , p. 50-51), falemos da “interpretação subjetiva sobre os episódios que foram eleitos como relevantes por ele – aí reside sua autonomia a ser prezada”.
Primeiramente, cabe voltar a Canguilhem: as mudanças pelas quais passamos, decorrentes do movimento da vida, exigem que nós nos reinventemos. De fato, o que define “saúde” é a habilidade de instituir novas normas em novas situações, de reparar e resistir às indeterminações do meio. “Esse ponto de vista é o da normatividade vital. Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir” (Canguilhem, 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 88, grifo do autor). Apesar das privações que sofre, Marcos é capaz de escolher, residindo aí suas potencialidades de ação e determinação pessoais. Qualquer enfermidade, “longe de ser uma experiência bruta […], é principalmente ambivalente e relativa a sistemas de avaliação que informam, ao mesmo tempo, a prática terapêutica e a experiência do doente” (Laplantine, 2010LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo: Editora WFM Martins Fontes, 2010. , p. 101, grifo do autor). Mesmo em meio ao sofrimento, Marcos é hábil em manejar seu mal-estar, a ponto de converter a DRC em fonte de virtudes, dentre as quais ele destaca a empatia.
Tudo você enxerga de forma diferente [quando se tem doença renal] . Você passa, no meu caso por exemplo, a ser mais empático com algumas questões, com as outras pessoas. […] Então eu acho que rola um pouco mais de empatia, de entender mais o ponto do outro, de aceitar mais o outro, [aceitar] que o outro também tem problemas. Então, acho que rola essa percepção (Relato de Marcos) .
A partir de suas experiências enquanto doente renal crônico, Marcos enxerga o mundo de modo diferente. Notemos, a enfermidade altera a percepção que ele tem da vida, percepção engendrada através dos sofrimentos que há tempos vivencia. Marcos está acostumado com rotina de hospital desde muito jovem: seus problemas renais começaram por volta dos 13 anos, dois anos após perder a mãe; durante a adolescência, ficara sob tratamento conservador, à base de medicamentos e dieta, dando início à diálise peritoneal somente por volta dos 20 anos. Durante os quatro anos de diálise peritoneal que fizera, começara a ficar inchado e a passar mal, além de desenvolver problemas pulmonares e estomacais; suas idas à UTI ficaram cada vez mais frequentes, tornando a hemodiálise, enfim, imprescindível. São quase duas décadas que variam entre momentos de extrema angústia e de pesado cansaço, período no qual a cronicidade representa não “tanto uma ruptura biográfica única, mas uma continuação de rupturas – uma entre muitas” (Honkasalo, 2001HONKASALO, M. Vicissitudes of pain and suffering: Chronic pain and liminality. Medical Anthropology, Philadelphia, v. 19, n. 4, p. 319-353, 2001. , p. 343, tradução nossa). “ Se você parar pra pensar, é um pouco triste uma pessoa de vinte e poucos anos já ter essa bagagem, essa vivência ”. Não obstante, é mediante tal tristeza que Marcos passa a “ entender melhor as outras pessoas ”, tendo a empatia como um valor constitutivo de sua visão de mundo. Compreender as dores alheias é algo que ele deseja para si mesmo, isto é, que as pessoas o reconheçam enquanto doente renal. Aquilo que ele projeta em suas relações com outrem é, de certa forma, o que carece no dia a dia: aceitação da diferença, em específico, da diferença crônica. Logo, a DRC significa muito mais do que um diagnóstico médico, referindo-se a um traço fundamental da identidade. Semelhante à esquizofrenia, epilepsia, hemofilia, entre outras desordens persistentes e severas, ela pode ser considerada, nas palavras de Sue Estroff ( 1989ESTROFF, S. Self, identity, and subjective experiences of schizophrenia: In search of the subject. Schizophrenia Bulletin, Oxford, v. 15, n. 2, p. 189-196, 1989. , p. 189, tradução minha, grifo do autor), “uma doença do tipo eu sou, que está ligada à identidade social e talvez ao eu interior”. Marcos não tem simplesmente uma doença: após se entender como portador de DRC, ele tornou-se uma outra pessoa, com carências e exigências consonantes ao sofrimento pelo qual passou e passa.
No meio terapêutico, felizmente, Marcos encontra reconhecimento. Os profissionais da clínica, em especial os enfermeiros e técnicos de enfermagem, “ são muito prestativos, muito atenciosos com a gente […] eles entendem o que a gente tá passando ali ” . Um ex-técnico da clínica, da sua mesma faixa etária, se destaca quanto a isto. “ Às vezes a gente conversava. Quando eu cheguei na diálise, ele me deu bastante força, me explicando como as coisas funcionavam, me ajudando quando eu passava mal ”. Ademais, por conta da doença e tratamento, Marcos construiu novas amizades ao longo dos anos, principalmente fora da clínica, em ambientes virtuais. “ As redes sociais uniram as pessoas . […] E nisso você vai conversando, conhecendo as pessoas, conhecendo as histórias ”. O ciberespaço contribuiu para a formação de uma rede entre doentes renais; novos espaços de socialização surgiram, e os sujeitos passaram “a mediar em suas relações as dimensões on-line e off-line de suas experiências” (Borges; Melo, 2022). “ Por exemplo, doação de remédios. Você podia, tipo, ”ah, aqui em São Paulo está faltando tal remédio, mas no Rio de Janeiro eles estão dando ele”. Então tinha essa troca ”. Intercambiando afetos, medicamentos, informações etc., Marcos passou a servir-se da internet como mais um meio de publicizar sua doença e identidade. Dentro ou fora da clínica, em ambientes reais ou virtuais, portanto, verifica-se que a doença é uma espécie de liga: não se trata apenas de uma “entidade nosológica”, pelo contrário, ela é sobremaneira fator de relação e significação.
Diariamente vivida por Marcos, a DRC é parte importante da sua corporeidade e visão de mundo; para o bem ou para o mal, ela é um incontornável atributo da sua pessoa, estando inscrita em sua trajetória de vida (Das, 2023DAS, V. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp, 2023. ; Fassin, 2012FASSIN, D. O sentido da saúde: antropologia das políticas de vida. In: SAILLANT, F.; GENEST, S. (org.). Antropologia médica: ancoragens locais, desafios globais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. ). Estar doente não é uma “condição objetiva”, visto que qualquer adoecimento é uma experiência comandada “por julgamentos de valor (a saúde chega a ser o protótipo de todo valor, que vem de valare :”estar bem”) e não existe valor sem referência, implícita ou explicita, ao social” (Laplantine, 2010LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo: Editora WFM Martins Fontes, 2010. , p. 102). As referências de Marcos, como vimos, giram em torno da liberdade e privação, sendo o valor “saúde” uma questão de maior ou menor autonomia. Livre do tratamento ele jamais será, porque o desejo é a cura e, se levado às últimas consequências, tal desejo torna-se uma ilusão. Consequentemente, onde depositar a esperança de melhoras? “ No transplante. Todo mundo acha que o transplante é a cura da doença renal. Mas quem tá ali convivendo sabe que não é. É um outro tratamento, que só dá mais liberdade pra pessoa ”. Marcos é deveras realista: os tratamentos existentes são ambíguos, garantindo-lhe, no máximo, doses homeopáticas de libertação. Viver sempre envolverá uma aflição sem ressalvas, um sofrimento que é “frequentemente absolvido no dia a dia e, ainda assim, marca-o com uma sensação de que as coisas não caminham bem ou até mesmo uma sensação de sufocamento e mau augúrio” (Das, 2023DAS, V. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp, 2023. , p. 17).
É neste horizonte comprimido pela doença – onde não se faz planejamentos longos –, que Marcos se esforça em recriar a si mesmo, remodelando o mundo em que habita, adotando uma atitude empática face ao sofrimento alheio. Seu normal pode ser entendido, de acordo com Lucas Soneguet ( 2022SONEGHET, L. A normalidade crítica do cotidiano diante do adoecimento e da morte. Anuário antropológico, Brasília, DF, v. 47, n. 2, p. 205-222, 2022. , p. 207), “não como o efeito de um conjunto de normas, ou como a emulação de um estado ideal abstraído, mas como um sentido e senso incorporado que é cultivado intersubjetivamente dia após dia”. Até aqui, não mencionei a presença da morte na trajetória de Marcos, entretanto, podemos entrever que se trata de uma espécie de virtualidade, intensificada pela doença crônica que porta. Durante toda a trajetória de Marcos, morrer não foi alguma coisa longínqua: feito uma latência que pulsa no âmago do corpo, a morte se insinua há tempos em sua vida, relembrando-o de que sua existência está eivada por uma fragilidade irreparável independentemente do transplante que possa vir a fazer. A doença se manifesta, nesse caso, como uma espécie de pré-figuração da finitude (Augé, 2016). A metáfora da âncora diz tudo a esse respeito: submergir por completo, para Marcos, significaria perder a vida em si, e não somente a liberdade de vivê-la.
E poucos momentos colocaram tão em risco sua vida quanto o pandêmico…
Sensação de morte
Butler ( 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. , p. 26) disse, a respeito da covid-19, que “temos vivido em uma atmosfera de doença e morte”. Porém, segundo Marcos, já existia algo de doença e morte na atmosfera bem antes do início da pandemia.
Não, não era [rara a presença da morte antes da covid-19] . Porque você não houve falar de hemodiálise, diálise, nada disso na televisão, constantemente. Você não vê as pessoas falando sobre isso, então, existe muita desinformação […] sobre como é a vida de um doente renal crônico. Então, no começo, as incertezas eram gigantes, não sabia se, tipo, ‘ah, vou pro médico hoje, mas será que vou voltar amanhã?’ Mas depois de um tempo você acostuma, você vai vivendo (Relato de Marcos) .
Acostumar-se com a proximidade da morte, ir vivendo com sua iminente possibilidade, é parte de um aprendizado que consiste em transformar um meio atravessado por incertezas, num mundo habitável. As doenças que frequentemente são, de acordo com Marja-Liisa Honkasalo ( 2001HONKASALO, M. Vicissitudes of pain and suffering: Chronic pain and liminality. Medical Anthropology, Philadelphia, v. 19, n. 4, p. 319-353, 2001. , p. 327), entendidas como experiências de distúrbio e caos, em contrapartida, “necessitam de transformação, que começa pela incorporação da ruptura e da ameaça em um novo eu”. Com o apoio dos profissionais da saúde, recorrendo a informações on-line, Marcos assimilou o incerto, incluindo a morte que o acossa. Seu “novo eu”, por sua vez, consiste num “sentimento de segurança na vida, sentimento este que, por si mesmo, não se impõe nenhum limite” (Canguilhem, 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 142), até surgir um novo acontecimento capaz de reduzir suas capacidades de ação e relação – tal como ocorreu com a covid-19. Em tempos pandêmicos, de fato, doença e morte se tornaram acontecimentos diários, e para os doentes renais, nessas circunstâncias, fazer hemodiálise e viver adquiriram contornos extremamente dramáticos.
“ Foi bem complicado porque acaba que é uma sensação de morte pesando a todo momento. E a gente não sabia o que ia acontecer, não sabia como esse vírus funcionava, então eram muitas incertezas ” . A incerteza de se amanhã estaria vivo ou não tornou aguda a sensação de morte que Marcos sentia desde cedo em sua vida. Isto porque, primeiramente, ele pertence ao grupo de risco de pessoas com comorbidades, tendo contraído o vírus “ no final de abril pra o começo de maio de 2020. Fiquei vinte dias [na UTI]. Parece que foi um borrão, porque eu não lembro de muita coisa ” (Corrêa, 2021aCORRÊA, P. Entre veias e fios: uma etnografia na hemodiálise. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, 2021a. ). Em segundo, porque tinha que continuar o tratamento dialítico apesar do coronavírus. Diferentemente da maior parte da população, ele não teve a opção de ficar em casa, visto que as idas e vindas à clínica eram necessárias para sua sobrevivência. O referido “paradoxo” da hemodiálise volta a aparecer aqui: mesmo sob o perigo de contágio e morte, os pacientes dialíticos precisavam se arriscar para tratarem-se, pegando ônibus e metrô, frequentando ambientes hospitalares e clínicos… Por mais excruciante que fosse, trancar-se em casa ainda era uma opção reservada mormente às pessoas “normais”, ou seja, sem as consideradas comorbidades. “A distância social é um privilégio”, lembra Butler ( 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. , p. 85), “e nem todos podem estabelecer tais condições espaciais”. Marcos não é “normal” (nos termos médicos, claro); embora os noticiários explicitassem quais eram os riscos de se transpor os limites domésticos, ele não gozava do “privilégio” do isolamento social. O risco do coronavírus passou a “complementar” sua DRC, por assim dizer, fazendo surgir daí “uma sensação de morte” que pesava incessantemente. “ Parece que colocavam um alvo em você, só estavam esperando você morrer. [Para] alguns familiares mais distantes, [com] qualquer coisinha [que] eu fosse para o hospital, já falavam ‘o Marcos morreu’ ”.
O chamado “novo normal” nunca existiu para os pacientes hemodialíticos; a pandemia lhes era (e continua sendo, em muitos sentidos) uma “crise crônica”, menos uma ruptura do que “um estado de incoerência somática, social e existencial” (Vigh, 2008VIGH, H. Crises and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethos: Journal of Anthropology, Abingdon, v. 73, n. 1, p. 5-24, 2008. ). Privado de seguir adequadamente o isolamento social, Marcos diz que morreu “ umas quinze vezes pra minha família ”. As incertezas da covid-19 não incidiram apenas sobre ele, se estendo também para aqueles que lhe eram próximos, sobretudo porque “O isolamento em casa, o trabalho remoto e a diminuição da circulação nas ruas provocaram um esgarçamento de fronteiras e sentidos de ‘casa’, ‘trabalho’, ‘privado’, ‘doméstico’ e ‘público’” (Araujo, 2020 ARAUJO, M. A casa como problema e os problemas das casas durante a pandemia de covid-19. DILEMAS: Revista de estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro, 22 abr. 2020. Dossiê: Reflexões na pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-7 . Acesso em: 19 jan. 2022.
https://www.reflexpandemia.org/texto-7... , p. 1). Na verdade, o coronavírus realçou “uma relacionalidade composta não exclusivamente nem de mim e nem de você, mas concebida como o laço pelo qual esses termos são diferenciados e relacionados” (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. , p. 42, grifo da autora). A ameaça do contágio trouxe à tona uma aguda sensibilidade de que o outro – que está sentado ao meu lado, respirando o mesmo ar que o meu – é suscetível de contaminar-me ou ser contaminado por mim. Marcos tinha receio de contrair e transmitir o vírus para os seus familiares, ao passo que estes sofriam por não saber se ele voltaria vivo para casa. Tanto seu corpo quanto o de seus parentes, estavam irremediavelmente entrelaçados entre si, atados pelo vírus ou a ameaça deste. Ora, “os corpos pelos quais lutamos não são apenas nossos” (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. , p. 46), e o de Marcos – marcado pela cronicidade – era partilhado por aqueles que o circunscreviam, sendo seu sofrimento e suscetibilidade viral comungados pelas pessoas que se preocupavam com ele. Com efeito, a “sensação de morte” recobria o meio no qual o interlocutor vivia e, de maneiras diferentes, todos se encontravam acossados pela morte, seja de si ou de outrem.
A essa altura, o testemunho de Marcos requer uma leitura atenta, voltada menos à covid-19 como “crise sanitária mundial” e mais como um acontecimento que cria raízes no cotidiano. É preciso ir além da pandemia como fenômeno cristalizado na história epidemiológica e sociológica recente, colocando em tela o cotidiano das vidas por ela afetadas, com a finalidade de descrever, nas palavras de Das ( 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 22), “o modo como o evento se prende, com seus tentáculos, à vida cotidiana e penetra os recessos do ordinário”. Vejamos.
Se a morte não tocou Marcos, por outro lado, parentes seus vieram a falecer por causa do coronavírus. E não foram quaisquer parentes, “ foi meu pai, minha vó, mãe do meu pai, o irmão do meu pai e um tio irmão da minha mãe ”. Nesta sequência vertiginosa de perdas, o interlocutor detalha que todas estavam associadas a alguma comorbidade: “ o meu tio também fazia hemodiálise, mas por causa de um AVC que ele teve […]. O meu pai tinha diabetes e tinha infartado uma vez. E minha vó era ex-fumante, então já tava com o pulmão debilitado ” . Os parentes de Marcos, assim como ele, encontravam-se no grupo de risco das comorbidades (portadores de doença crônica, fumantes, idosos), compartilhando essa vulnerabilidade. Longe de ser uma ameaça aos indivíduos em particular, a covid-19 constituiu-se em uma ameaça aos corpos em totalidade; como sujeitos interdependentes entre si, abertos uns aos outros, filho, pai, tios etc. plasmavam uma mesma condição de precariedade. Certamente, essa interdependência sempre existira, ainda de que forma latente, mas, em tempos pandêmicos, ela tornou-se manifesta à medida que assustadora. Porque com o coronavírus, “Estamos muito literalmente nos corpos uns dos outros sem nenhuma intenção deliberada de estar lá. Se não estivéssemos, não teríamos medo” (Butler, 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. , p. 74).
O medo é uma emoção que passou a afetar Marcos em demasia após o início da covid-19. Medo de contrair o vírus enquanto doente renal, medo de transmiti-lo após circular e frequentar ambientes hospitalares e clínicos, enfim, medo de morrer e de ser a razão da morte das pessoas que ama. Como aponta Claudia Rezende ( 2020 REZENDE, C. Reflexões sobre o constrangimento e o medo na pandemia. DILEMAS: Revista de estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro, 2020. Dossiê: Reflexões na pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-46 . Acesso em: 24 jan. 2022.
https://www.reflexpandemia.org/texto-46... ), o medo do vírus, misturado ao constrangimento das regras sociais da pandemia, virou “também um discurso moral”, que adquiriu força, sobretudo, com a presença redobrada da morte. Nesse cenário, Marcos passou a se sentir angustiado por “forças morais que incitam à ação social, seja pela observação das regras sociais de evitação de contágio, seja pela adoção de medidas governamentais de controle efetivo da pandemia” (Rezende, 2020 REZENDE, C. Reflexões sobre o constrangimento e o medo na pandemia. DILEMAS: Revista de estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro, 2020. Dossiê: Reflexões na pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-46 . Acesso em: 24 jan. 2022.
https://www.reflexpandemia.org/texto-46... , p. 3). Mas, enquanto portador de comorbidade, ele era uma exceção à regra. “ Você via no jornal sempre falando: ‘pessoas com comorbidade são grupos de risco, pessoas com comorbidades estão morrendo mais’, então você acaba tendo a apreensão ” [de ser contaminado e contaminar] . Implicado nos corpos alheios, Marcos receava relacionar-se com as pessoas que lhe eram próximas, na medida que sabia que tais pessoas, querendo ou não, ofereciam a ajuda necessária para que continuasse vivendo. A situação vivida por ele é uma excelente ilustração da precariedade intrínseca aos laços humanos, “que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro” (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. , p. 51).
Anteriormente, disse que Marcos encontra reconhecimento no meio terapêutico, porém, devo complementar dizendo que sua doença é igualmente reconhecida pela família e amigos, que o ajudavam em termos de afeto, companhia e até financeiro. Retomemos o já mencionado reconhecimento. Em parte, Marcos legitima-se como sujeito mediante a cronicidade (ela perfaz sua identidade, como vimos), tomando seu corpo e sofrimento uma “base para um novo reconhecimento” (Fassin, 2012FASSIN, D. O sentido da saúde: antropologia das políticas de vida. In: SAILLANT, F.; GENEST, S. (org.). Antropologia médica: ancoragens locais, desafios globais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. , p. 384). Com a chegada do coronavírus, tal reconhecimento se desmoronou e, de novo, ele se vira privado de algo substancial – não só da liberdade de se relacionar livremente, mas das relações em si. “ A todo momento eu lido com perdas, porque meus amigos da diálise morreram, meus familiares morreram ”. Após cada perda, Marcos foi destituído de um dos principais baluartes contra o sofrimento que tinha – as relações interpessoais –, sendo também despossuído da socialidade que o legitimava como sujeito até então. Ao falar da morte do pai, isto fica claro:
A morte do meu pai foi um momento meio complicado […], mas depois de um tempo comecei a lidar melhor com a morte dele. Eu continuei vivendo, seguindo a vida, fazendo minhas coisas, porque acho que é assim que meu pai queria que eu fizesse. Mas, alguns dias são mais difíceis que outros, por causa que basicamente tudo o que eu sou, tudo o que eu gosto, [veio] do meu pai. Então, no começo, entrar em contato com essas coisas foi bem difícil, me trazia a lembrança, me trazia a memória dele (Relato de Marcos) .
A perda do pai foi uma perda de si mesmo; aquele que era sua referência primordial de reconhecimento, morrera levando consigo uma parte de Marcos. Ele vivia junto com o pai, e mesmo residindo atualmente com a irmã, sobrinha e cunhado, sente a ausência da pessoa que moldou determinantemente sua personalidade. Nesse sentido, a pandemia aniquilou uma parcela significativa da vida de Marcos, deixando um rastro de perdas que subsiste até agora; o coronavírus mantém-se perene, somando-se às outras perdas já vivenciadas. É na memória que a morte se atualiza dia após dia: a covid-19 desceu ao ordinário do interlocutor, e as lembranças do pai sobrevém-lhe, ecoando uma fratura irreparável do seu passado. Entretanto, é com isto que ele tem que lidar: “a memória corporal de ser-com-outros [que] faz com que o passado envolva o presente como uma atmosfera” (Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 113). Atmosfera de doença e morte, como apontado por Butler, e de insegurança intensificada para aqueles que pertencem ao “grupo de risco”.
Atenhamo-nos na questão da memória por um instante. “Se o que faz o homem é a linguagem”, esclarece Fassin ( 2012FASSIN, D. O sentido da saúde: antropologia das políticas de vida. In: SAILLANT, F.; GENEST, S. (org.). Antropologia médica: ancoragens locais, desafios globais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. , p. 385), “então a vida é também memória daquilo que temos e a forma como narramos essa memória”. Em Marcos, o modo de ser-com-os-outros, com a pandemia, foi brutalmente danificado, o que levou à introdução de uma fissura em sua narrativa, uma descontinuidade em sua biografia. Seguir vivendo após essa experiência, traz a incorporação de um conhecimento pelo sofrimento, “um engajamento no cotidiano com a criação de limites em diferentes regiões do eu e da socialidade”, nas palavras de Das ( 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 118). Isto é um processo e leva tempo, porque trata-se de um “trabalho do tempo”. “O tempo não é algo puramente representado, mas um agente que ‘trabalha’ nas relações” (Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 126). A temporalidade pandêmica ceifou vidas e destruiu relações, não deixando sequer margem para o luto. “ Foi um intervalo bem curto [entre] as mortes [do pai, da avó e dos tios]. A gente não tinha tempo pra viver o luto, porque já tinha um outro em seguida […] não teve um velório. Era sair do hospital e ir direto pro enterro ” 99 Por não fazer parte do escopo deste artigo, não abordarei a questão do luto com profundidade. Ressalto apenas que, na esteira de Victor Turner ( 2013 ), é um processo estruturado que se desenrola dentro de uma dada temporalidade, pela qual sobrepuja-se o perigo da desagregação social. Todavia, os protocolos sanitários instituídos durante a pandemia encurtaram ou até mesmo suprimiram os velórios e enterros. “Neste ponto”, diz Andreia Vicente da Silva (2020, p. 3), há uma prejudicial “quebra na sequência ritual majoritariamente adotada no Brasil urbano, já que o velório é parte central do rito de passagem. É nesta fase que os parentes e amigos se reúnem para se despedir do seu morto”; sem ela, não se cumpre adequadamente o ritual, obliterando o processamento da perda, do enlutamento. . Por outro lado, é também o tempo que trabalha nas relações de Marcos, bem como é ele quem luta para não chafurdar na tristeza, em especial, através do reconhecimento e convivência com as vidas que não foram perdidas. Na introdução, disse que a pandemia foi um catalisador de ações e relações sem precedentes. Para Marcos, isto tomou forma após aproximar-se da sobrinha, que passou a ficar sob seus cuidados depois que os pais dela abriram uma distribuidora de bebidas. “ Eu tive muito mais contato com minha sobrinha do que os pais dela. Então, isso me ajudou bastante a continuar ”. A perda do pai e as dificuldades financeiras da irmã e cunhado, permitiram que ele criasse laços com a garota, de maneira que ambos enfrentaram e vêm enfrentando o processo de luto em conjunto. Se “a morte silenciosa é a ‘morte ruim’, associal, sem apoio de parentes”, (Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 80), Marcos e sobrinha, por sua vez, transfiguraram esse silêncio em discurso e socialidade.
Ela tem oito anos, mas ela lidou muito bem [com a perda do avô] , e isso me ajudou também a lidar com a morte do meu pai. Por causa que eu tinha minha sobrinha pra cuidar, eu tinha que tá ali presente pra ela. A gente fez várias atividades juntos, tentei fazer ela se abrir um pouco (Relato de Marcos).
A covid-19 não teve um fim: ela continua na trama da vida. O passado não “morreu” nem “se foi”, pois “pode ser atualizado de uma forma contraída” (Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 141). Em “ dias mais difíceis ”, Marcos recorda do pai que perdera, e, consequentemente, regiões do seu passado são atualizadas, passando a definir as condições afetivas do agora. Não à toa ele passou a sofrer de crises de pânico e depressão durante a pandemia, tendo que procurar ajuda psicológica (Corrêa, 2021aCORRÊA, P. Entre veias e fios: uma etnografia na hemodiálise. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, 2021a. , 2021b CORRÊA, P. Isolamento, solidão, morte: os dramas de ser doente renal crônico em tempos pandêmicos. Pensata, Guarulhos, v. 10, n. 2, p. 29-48, 2021b. Dossiê: Pandemia, precarização e desigualdades. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/pensata/article/view/13025 . Acesso em: mai. 2022.
https://periodicos.unifesp.br/index.php/... ). Mas, no restante dos dias, ele tem a sobrinha, e vice-versa: ambos trabalham nas perdas contraídas (realizando atividades, conversando), suprimindo assim o bloqueio da morte com o propósito de “habitar o mundo em um gesto de luto”, como diz Das ( 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 142), em “uma aceitação da finitude num gesto que assume que a esperança é sempre esperança contra a evidência”.
Que evidência é essa que precisa ser enfrentada com esperança? Que fique claro: Marcos não nutre uma expectativa positiva e tola diante dos problemas da vida. Ao contrário, ele sabe que o coronavírus somente “ caiu de nível ”, e não desapareceu; sabe que “ muita gente não respeitava e não usava máscara ” e que assim continuarão; sabe que a cura para a DRC não é possível “ clinicamente falando ”… Para ele, ser portador de DRC, em especial após a pandemia, é uma experiência evidentemente sofrível e, por vezes, uma aproximação com a morte. Pode parecer que estou sendo fatalista aqui, contudo, quando questionei Marcos sobre a hipotética chance de um dia se ver curado, ele respondera sem pestanejar: “ eu me privei de muitas coisas. Não só eu me privei, me foi privado muitas coisas. Então, se eu pudesse acordar amanhã sem doença renal, eu acordaria. Não ia sentir falta de jeito nenhum ”. Estamos às voltas com a privação de novo. Marcos vive numa condição aquém do que gostaria de viver, com um corpo que “ não aceita fazer tantas coisas como eu fazia antes ”. Contra tais evidências, não há escapatória: ele reconhece a doença renal e as complicações advindas da covid-19 enquanto privações irrevogáveis na mesma medida que insatisfatórias.
Não obstante, é aquém da “normalidade” que ele se vira como pode. A DRC e a covid-19 continuam visíveis na sua história, nos gestos e nas conversas que enceta. Embora sejam parte do passado, elas não carregam “consigo um sentimento de ser passado” (Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 138, grifo da autora). É com tal sentimento – de um passado que permanece presente – que Marcos se engaja no cotidiano, fomentando novos laços e reparando os perdidos, na expectativa de continuar fazendo “ aquilo que [está] na capacidade de viver ”. A pandemia causou-lhe a perda de coerência e unidade e, “no entanto, esta experiencia de fragmentação não [o] conduz necessariamente à passividade” (Vigh, 2008VIGH, H. Crises and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethos: Journal of Anthropology, Abingdon, v. 73, n. 1, p. 5-24, 2008. , p. 10). Apesar das evidências, Marcos resguarda certa esperança: não de voltar a ser “saudável”, mas de continuar com as atividades que estão sob alcance. “O essencial, para ele, é sair de um abismo de impotência ou de sofrimento em que quase ficou definitivamente , o essencial é ter escapado de boa ” (Canguilhem, 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. , p. 75, grifo do autor).
Não submergir por completo na DRC é o mais importante para Marcos. Ele não leva a vida que realmente quer e, se pudesse, acordaria amanhã sem doença alguma. Mas diante das perdas e mortes que sofrera, não tem cabimento, para ele, lamentar sua condição, tampouco especular uma outra menos sofrível e perigosa. Marcos tem consciência de que são com os fragmentos de um passado danificado que terá que trabalhar, “fragmentos que aludem a um modo particular de habitar o mundo” (Das, 2020bDAS, V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020b. , p. 27). O legado da DRC e da covid-19 é de tristezas e perdas, sem dúvida, porém com o tempo é possível transformá-lo através da hemodiálise, da reconstrução das relações, e da reescrita da biografia que, “ se for olhar pra trás tudo o que eu já vivi, parece um filme. Parece que são vários ”Marcozinhos” que se conectam em um. Porque eu já fiz tanta coisa na vida que parece que não é uma vida ” . É esta vida dividida e fraturada, possuidora de múltiplos “eus”, que Marcos perscruta cotidianamente rearranjar. Não é fácil levar este reordenamento a cabo; no entanto, realizá-lo é o que Marcos deseja fazer. Por quê? Bem, porque seu pai gostaria que fosse assim, porque sua sobrinha precisa dele…
Só o tempo dirá quão bem sucedido ele será nesta empreitada. Por isso, encerro com um poema em prosa escrito por Marcos (que autorizou reproduzi-lo aqui), que traduz sua sensação do ido e do porvir melhor do que qualquer palavra que eu possa vir a escrever:
Eu sei que o tempo é relativo para as pessoas, que para alguns ele é carrasco, mas pra outros é remédio. Eu sei que meu tempo é limitado, curto, que os dias são contados, que existe um relógio e o ponteiro caminha para a sua última volta. Eu sei que o tempo pode trazer paz e alívio, mas que também traz angústia e sofrimento. Eu sei que meu tempo tem fim, que os dias deixaram de ser floridos, e passaram a ter espinhos, que a noite chegara e não terá mais a luz do luar para iluminar. Eu sei que o segundo se foi, não volta mais. O trem partiu, a flecha não volta, e as palavras ditas, não podem ser apagadas (Relato de Marcos) .
Considerações finais
O presente texto olhou a pandemia de covid-19 de um ângulo particular. O caso de Marcos não foi generalizado e nem apresentado como uma exceção à regra. Ao contrário, sua trajetória foi tão simplesmente mostrada enquanto uma idiossincrasia da covid-19. Vidas e mortes foram tratadas, ao longo da pandemia, de forma quantitativa, numérica. Isto é preocupante. “O ato de calcular parece retirar a criatura humana da esfera da finitude e produz um grupo cujas vidas e mortes podem ser calculadas” (Butler, 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. , p. 128). Com Marcos, busquei restituir a finitude da vida, destacando o papel que a morte teve e tem na sua trajetória antes de e durante a covid-19, apresentando a vivência desta pandemia como uma “crise que corrói as construções de sentido pelas quais se entrelaçam as diferentes esferas da nossa existência” (Vigh, 2008VIGH, H. Crises and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethos: Journal of Anthropology, Abingdon, v. 73, n. 1, p. 5-24, 2008. , p. 15). Seria uma fantasia ignóbil encarar a experiência dele em termos numéricos: algo dela é irredutível aos cálculos e experimentos da ciência, sobretudo, da biomedicina. E é na “antecipação da morte enquanto limite extremo da experiência” (Agamben, 2003, p. 27) que melhor compreendemos as aflições e vulnerabilidades de Marcos, que, em muitos pontos, são também as de todos nós.
Referências
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- 1Este artigo é a versão revisada e ampliada de texto apresentado por ocasião do 21º Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado na UFPA, em 2023. Financiamento: Capes (processo nº 88887.761393/2022-00).
- 2E outras nem tão originais, visto que a covid-19 também provocou o recrudescimento de velhas políticas e práticas segregacionistas, desigualitárias e colonizadoras. Como aponta Judith Butler ( 2022BUTLER, J. Que mundo é esse?: uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ), as configurações históricas tradicionais (burguesas, patriarcais, nacionalistas etc.) moldaram sobremodo as concepções e comportamentos adotados contra o coronavírus.
- 3Movimento, confiança e ordem são três aspectos que explicam o vitalismo de Canguilhem ( 2012CANGUILHEM, G. O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. , 2018CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. ). Por ora basta dizer que, seguindo este autor, eu concebo o vivente em meio a um mundo de contingências (biológicas, sociológicas etc.), possuindo ele a consciência e a habilidade de sobrelevar os problemas que lhe são impostos, construindo, assim, uma confiança na vida mediante as normas que estabelece.
- 4Nome fictício. O interlocutor assinou o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido.
- 5Sinteticamente, podemos dizer que existem três processos terapêuticos para a DRC: (1) hemodiálise: técnica mais comum em que, por meio de uma fístula ou cateter (colocado no braço ou no peito), o sangue é filtrado por uma máquina; necessita-se frequentar a clínica ao menos três vezes por semana; (2) diálise peritoneal: através da membrana peritoneal, insere-se um cateter na parte inferior do abdômen, podendo ser realizada em casa pelo próprio doente ou terceiros; e (3) transplante renal crônico: é a substituição dos rins adoentados por um saudável vindo de um doador vivo ou morto, não anulando, contudo, os cuidados terapêuticos.
- 6Adoto o itálico nos registros de fala do interlocutor.
- 7No Brasil, a maior parte da população renal crônica está na faixa etária de 45-64 anos (41.5%), seguido pelos pacientes com mais de 65 anos (35%) (Neves et al ., 2020NEVES, P. et al. Censo Brasileiro de Diálise: análise de dados da década 2009-2018. Jornal Brasileiro de Nefrologia, São Paulo, v. 42, n. 2, p. 191-200, 2020. ). Nesse sentido, a pouca idade de Marcos o distingue da maioria dos doentes renais crônicos, refletindo no modo como ele experimenta a DRC.
- 8O que é “cronicidade”? Embora haja diversas abordagens e sentidos para ela (Barsaglini; Portugal; Melo, 2021BARSAGLINI, R. Experiência: fundamentos conceituais e a abordagem socioantropológica em saúde e cronicidade. In: BARSAGLINI, Reni; PORTUGAL, S.; MELO, L. (org.). Experiência, saúde, cronicidade: um olhar socioantropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. ; Bury, 2011BURY, M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus – Actas de Saúde coletiva, Brasília, DF, v. 5, n. 2, p. 41-55, 2011. ; Canesqui, 2007CANESQUI, A. Estudos socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. In: CANESQUI, A. (org.). Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2007. ; Honkasalo, 2001HONKASALO, M. Vicissitudes of pain and suffering: Chronic pain and liminality. Medical Anthropology, Philadelphia, v. 19, n. 4, p. 319-353, 2001. ), prefiro deixá-las de lado por enquanto, com o intuito de fazer reverberar a experiência de Marcos em primeiro lugar. Como assinala Das ( 2023DAS, V. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp, 2023. , p. 251), “a questão não é só de significado, mas também de tentar entender o que é o ser dessa entidade (doença, enfermidade) que parece ter uma relação tão incômoda com a própria experiência e uma necessidade de encontrar autorização para ‘sua’ realidade”.
- 9Por não fazer parte do escopo deste artigo, não abordarei a questão do luto com profundidade. Ressalto apenas que, na esteira de Victor Turner ( 2013TURNER, V. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 2013. ), é um processo estruturado que se desenrola dentro de uma dada temporalidade, pela qual sobrepuja-se o perigo da desagregação social. Todavia, os protocolos sanitários instituídos durante a pandemia encurtaram ou até mesmo suprimiram os velórios e enterros. “Neste ponto”, diz Andreia Vicente da Silva (2020, p. 3), há uma prejudicial “quebra na sequência ritual majoritariamente adotada no Brasil urbano, já que o velório é parte central do rito de passagem. É nesta fase que os parentes e amigos se reúnem para se despedir do seu morto”; sem ela, não se cumpre adequadamente o ritual, obliterando o processamento da perda, do enlutamento.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Nov 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
23 Nov 2023 - Aceito
10 Abr 2024 - Revisado
10 Jul 2024