Avaliação do sistema de referência e contrarreferência do estado da Paraíba segundo os profissionais da Atenção Básica no contexto do 1º ciclo de Avaliação Externa do PMAQ-AB

Evaluation of the reference and counter-reference system based on the responses of the Primary Care professionals in the first External Evaluation cycle of PMAQ-AB in the state of Paraíba

Ane Polline Lacerda Protasio Polyana Barbosa da Silva Edmilson Calixto de Lima Luciano Bezerra Gomes Liliane dos Santos Machado Ana Maria Gondim Valença Sobre os autores

Resumos

Este trabalho objetiva caracterizar a organização, a articulação e a assistência da rede de atenção à saúde no estado da Paraíba, com base nos dados do 1º ciclo de Avaliação Externa do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Realizou-se um estudo do tipo transversal, cujos dados foram analisados descritivamente por meio de valores absolutos e respectivos percentuais. Concluiu-se que existem fragilidades na integração da rede de atenção à saúde na Paraíba em relação ao ordenamento e definição do fluxo, em especial na contrarreferência, fato que pode comprometer a integralidade e o papel da Atenção Básica de coordenar o cuidado e ordenar as redes.

Atenção Primária à Saúde; Sistema Único de Saúde; Acesso aos serviços de saúde; Avaliação em saúde; Assistência à saúde


In this work, are analyzed the organization, coordination and assistance of the health care networks in the state of Paraíba, Brazil, based on the data obtained from the 1st cycle of the external evaluation of the National Program for Access and Quality Improvement in Primary Care (PMAQ-AB). It was carried on a cross-sectional study and the data were descriptively analyzed by its absolute and percentage values. It was concluded that there are weaknesses in the integration of the health care network in the state of Paraíba/Brazil concerning the planning and definition of the flow, especially in counter-reference which may compromise the integrity and the role of primary care in order to manage public care and health network.

Primary Health Care; Unified Health System; Health services accessibility; Health evaluation; Delivery of health care


Introdução

O princípio da "integralidade" em saúde, definido na Lei 8.080/1990 (BRASIL, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, v. 128, n. 182, p. 18055, 1990.), é um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Esse princípio incorpora a premissa de garantir a atenção nos três níveis de complexidade da assistência, suscitando o conceito de rede de assistência à saúde (GIOVANELLA , 2002GIOVANELLA, L. et al. Sistemas municipais de saúde e a diretriz da integralidade da atenção: critérios para avaliação. Saúde em Debate,Rio de Janeiro, v. 26, n. 60, p. 37-61, 2002.) e torna-se base para que os serviços ofertem ações de promoção à saúde, prevenção dos fatores de risco, assistência aos danos e reabilitação, segundo a dinâmica do processo saúde/doença. Essas devem estar articuladas e integradas em todos os espaços organizacionais do sistema de saúde (CAMPOS, 2003CAMPOS, C. E. A. O desafio da integralidade segundo as perspectivas da vigilância da saúde e da Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 569-584, 2003.). No entanto, esse princípio, juntamente com o controle social, necessita ser mais diligenciado para ter um alcance maior em relação àqueles como, por exemplo, a descentralização e a universalização que são mais concretos (GIOVANELLA , 2002GIOVANELLA, L. et al. Sistemas municipais de saúde e a diretriz da integralidade da atenção: critérios para avaliação. Saúde em Debate,Rio de Janeiro, v. 26, n. 60, p. 37-61, 2002.). O processo de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) ainda apresenta inúmeras limitações, mesmo com os notáveis progressos e seu evidente fortalecimento, e seus princípios norteadores ainda não se tornaram uma realidade no cotidiano da atenção à saúde.

A Constituição Federal do Brasil de 1988 estabeleceu que

as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema único organizado de acordo com as diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (BRASIL, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, v. 128, n. 182, p. 18055, 1990.).

Essa rede, assim como estabelecida, é importante tendo em vista a resolubilidade nos serviços de saúde e, para isso, o nível secundário de atenção à saúde tem de assegurar o acesso dos usuários a consultas e exames especializados, indispensáveis para a conclusão de diagnósticos oriundos da Atenção Primária à Saúde (APS) (SERRA; RODRIGUES, 2010SERRA, C. G.; RODRIGUES, P. H. A. Avaliação da referência e contrarreferência no Programa Saúde da Família na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 3579-3586, 2010.).

O Ministério da Saúde sugere, no documento denominado de Mais saúde: direito de todos: 2008-2011, uma estratégia para a organização de redes de atenção à saúde e fortalecimento do SUS, a saber: a instituição dos Territórios Integrados de Atenção à Saúde que se caracteriza por um conjunto de políticas, programas e unidades de atenção à saúde que se articulam em cada região de saúde de maneira funcional mediante a integração da "produção de saúde" e de estruturas públicas de "planejamento, gestão e governança" (BRASIL, 2008______. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Mais saúde: direito de todos: 2008-2011. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008.). Nessa perspectiva, o atendimento integral à saúde ultrapassa a estrutura organizacional hierarquizada e regionalizada da assistência de saúde, se prolongando pela qualidade real da atenção individual e coletiva assegurada aos usuários do sistema de saúde (MACHADO , 2007MACHADO, M. et al. Integralidade, formação de saúde, educação em saúde e as propostas do SUS: uma revisão conceitual. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 335-342, 2007.).

Dessa forma e no intuito de melhorar a qualidade do atendimento e a ampliação da oferta qualificada dos serviços de saúde no âmbito do SUS, o governo federal criou em 2011 o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), o qual está organizado em quatro fases, a saber: Adesão e contratualização; Desenvolvimento; Avaliação externa e Recontratualização, que se complementam, formando um ciclo contínuo de melhoria do acesso e da qualidade da Atenção Básica (AB) (BRASIL, 2012______. Ministério da Saúde. Saúde mais perto de você - acesso e qualidade programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção Básica (PMAQ-AB): documento síntese para avaliação externa. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.).

A terceira fase, foco de interesse do presente trabalho, objetiva a certificação do desempenho das equipes de saúde por meio do monitoramento dos indicadores contratualizados e pela verificação de um conjunto de padrões de qualidade no próprio local de atuação dessas equipes, além de um levantamento de informações, que contemplem a avaliação da rede local de saúde pelas equipes de Atenção Básica e os processos complementares de avaliação da satisfação do usuário e da utilização dos serviços, para orientar o aperfeiçoamento das políticas de saúde (BRASIL, 2012______. Ministério da Saúde. Saúde mais perto de você - acesso e qualidade programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção Básica (PMAQ-AB): documento síntese para avaliação externa. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.).

Entre os aspectos levantados na Avaliação Externa pelo PMAQ-AB, encontram-se informações sobre a articulação e integração da referência e contrarreferência, as quais permitem compreender como é concretizado o princípio da integralidade da Atenção Básica no âmbito do SUS. Nessa perspectiva, este trabalho tem como objetivo principal descrever um estudo sobre as características da organização, da articulação e da assistência, a partir do olhar dos profissionais de saúde acerca da referência e contrarreferência, com base nos dados do 1º ciclo de Avaliação Externa do PMAQ-AB, no estado da Paraíba.

Métodos

Neste trabalho, foi realizado um estudo do tipo transversal em que se analisou o banco de dados produzido pelo Ministério da Saúde proveniente do 1º ciclo de Avaliação Externa do PMAQ-AB, realizado no ano de 2012 e primeiro semestre de 2013, contendo as respostas de todas as equipes de saúde da Atenção Básica contratualizadas, obtidas com a utilização do Instrumento Avaliação Externa - Saúde Mais Perto De Você.

Na Paraíba, a Avaliação Externa foi realizada no período de maio a outubro de 2012, em todos os seus 223 municípios, totalizando 1.568 unidades de saúde, das quais 625 (39,7%) aderiram ao PMAQ-AB e 946 (60,3%) apenas participaram do censo da estrutura física. Essa fase do PMAQ-AB na Paraíba foi realizada por pesquisadores/professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), que no estado compõem a rede colaborativa coordenada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que também articula instituições nos estados de São Paulo, Pará, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (CASTRO, 2014CASTRO, I. D. Avaliação Externa do PMAQ na Paraíba: um relato de experiência. Disponível em: <http://atencaobasica.org.br/comunidades/iv-mostra-eixo-tematico-1/avaliacao-externa-do-pmaq-na-paraiba-um-relato-de-experiencia>. Acesso em: 17 jan. 2014.
http://atencaobasica.org.br/comunidades/...
).

O instrumento de coleta da Avaliação Externa do PMAQ-AB contempla elementos relacionados à estrutura, equipamentos e condições de trabalho nas Unidades Básicas de Saúde (UBS); à qualidade do vínculo de trabalho e investimento em educação permanente dos trabalhadores; ao apoio dado às equipes pela gestão da Atenção Básica; ao acesso e qualidade da atenção à saúde ofertada ao cidadão e à satisfação e participação do usuário dos serviços de saúde de cada UBS avaliada (BRASIL, 2012______. Ministério da Saúde. Saúde mais perto de você - acesso e qualidade programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção Básica (PMAQ-AB): documento síntese para avaliação externa. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.).

É mister ressaltar que esse instrumento está organizado em quatro módulos de acordo com o método de coleta das informações (BRASIL, 2012______. Ministério da Saúde. Saúde mais perto de você - acesso e qualidade programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção Básica (PMAQ-AB): documento síntese para avaliação externa. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.):

  • Módulo I - que corresponde à observação na UBS e objetiva avaliar as condições de infraestrutura, materiais, insumos e medicamentos dessa UBS;

  • Módulo II - que corresponde à entrevista com o profissional da equipe de Atenção Básica e verificação de documentos na UBS, e visa à obtenção de informações sobre o processo de trabalho da equipe e sobre a organização do cuidado com o usuário, e, ao mesmo tempo, verifica documentos que apoiarão a avaliação da implantação de padrões de acesso e qualidade, realizada pelo avaliador da qualidade;

  • Módulo III - que corresponde à entrevista com o usuário na Unidade Básica de Saúde, e procura verificar a satisfação e percepção dos usuários quanto aos serviços de saúde no que se refere ao seu acesso e utilização;

  • Módulo IV - que é o módulo on-line e que compõe um conjunto de informações complementares aos Módulos I, II e III respondidas por gestores e equipes no Sistema de Gestão da Atenção Básica.

Neste trabalho, foram consideradas para obtenção da caracterização do fluxo as questões do Módulo II, realizado apenas nas equipes contratualizadas (n=625) referentes à articulação e integração da referência e contrarreferência, mais especificamente os itens e as variáveis que eles contemplam, tais como: 'Equipe de Atenção Básica como coordenadora do cuidado na Rede de Atenção à Saúde' (formas de encaminhamento para consulta especializada; registro de usuários de maior risco encaminhados para outros pontos de atenção e comprovação; existência de protocolos orientadores de prioridade para encaminhamento; existência de protocolos com diretrizes terapêuticas e comprovação); e 'Integração da Rede de Atenção à Saúde: ordenamento e definição de fluxos' (existência de central de regulação para marcação de consultas especializadas, exames e leitos; existência de fichas de encaminhamentos para demais pontos e comprovação; existência de referências e fluxos pactuados pela gestão municipal para atendimento dos usuários do território; frequência de contatos dos profissionais da AB com especialistas para troca de informações sobre pacientes encaminhados e dos especialistas com os profissionais de AB; existência de fluxo institucionalizado de comunicação e natureza do mesmo; lista de contatos na UBS para especialistas). A escolha destes itens se deu a partir do trabalho de Fratini, Saupe e Massaroli (2008)FRATINI, J. R. G.; SAUPE, R.; MASSAROLI, A. Referência e contra referência: contribuição para a integralidade em saúde. Ciência, cuidado e saúde, Maringá, v. 7, n. 1, p. 065-072, 2008., que afirmou que a busca por mecanismos facilitadores do estabelecimento de processos de referência e contrarreferência pode ser considerada fundamental para a concretização de um dos princípios fundamentais do SUS, que é o da integralidade da atenção.

A organização dos dados foi efetivada com análise dos dados mediante a estatística descritiva: distribuição absoluta e percentual das respostas.

Resultados

Um total de 625 equipes de Saúde da Família respondeu às questões do Módulo II do instrumento de coleta da Avaliação Externa do PMAQ-AB durante o estudo. Esse número refere-se às equipes contratualizadas na Paraíba.

Quando se refere à equipe de Atenção Básica como coordenadora do cuidado na rede de atenção à saúde, foram analisadas as 'formas de encaminhamento para uma consulta especializada' aplicadas pela unidade de saúde, sendo apresentadas na tabela 1 as respostas emitidas pelos usuários.

Tabela 1
Distribuição da frequência da forma de encaminhamento para uma consulta especializada aplicada pela unidade de saúde, considerando o total de 625 equipes de Saúde da Família

Verificou-se que, em 62,7% (n=392) dos casos, a equipe 'não mantém registro dos usuários de maior risco encaminhados para outros pontos de atenção', 36,8% (n=230) referiram que 'possuem registro', porém, apenas 25% (n=156) possuem documento que comprove.

Sobre as 'fichas de encaminhamento' dos usuários para os demais pontos de atenção, 536 (n=85,8%) das equipes referem possuir, porém, apenas 495 (n=79,2%) apresentaram documentos que comprovaram a existência das mesmas.

Quanto à 'existência de protocolos que orientariam a priorização dos casos com necessidade de encaminhamento', 75,0% (n=469) das unidades responderam negativamente. Ainda foi perguntado se 'havia diretrizes terapêuticas para alguns casos específicos' e as unidades referiram: 44,8% (n=280) possuíam para câncer do colo do útero, 37,9% (n= 237) para câncer de mama, 53,9 (n= 337) para pré-natal, 45,9% (n= 287) para crianças menores de dois anos, 45,3% (n=283) para hipertensão arterial sistêmica, 45,9 (n=287) para diabetes mellitus, 49,1% (n=307) para tuberculose, 45,9% (n=287) para hanseníase, 18,7% (n=117) para saúde mental, e 14,1% (n=88) para álcool e drogas.

Em relação à integração da rede de atenção à saúde, quanto ao 'ordenamento e a definição de fluxos', encontraram-se os resultados apresentados na tabela 2 de acordo com as respostas dos usuários.

Tabela 2
Distribuição da frequência quanto ao ordenamento e a definição de fluxos aplicados pela unidade de saúde, considerando o total de 625 equipes de Saúde da Família.

Constatou-se que 41,1% (n=257) das equipes referiram possuir documentos contendo as referências e fluxos pactuados pela gestão municipal para os atendimentos de usuários em seu território. Entretanto, 57,1% (n=357) não apresenta fluxo definido para: casos de suspeita de câncer de mama ou de colo do útero, parto, exame sorológico na gestante para sífilis ou anti-HIV, exame de glicose, urocultura ou sumário de urina, exame de ultrassonografia para gestante e urgências. A existência desse fluxo foi comprovada por documentos em 26,9% (n=168) das equipes de Saúde da Família (EqSF). Especificamente na tabela 3, é apresentada a frequência de cada área de atenção.

Tabela 3
Distribuição da frequência da existência de referência e fluxo definidos para cada área de atenção, considerando o total de 625 equipes de Saúde da Família

Ao ser indagada a frequência de troca de informações sobre os pacientes encaminhados, 49,4% (n=309) das unidades relataram que os profissionais da Atenção Básica nunca contatavam os especialistas e 41,0% (n=256) estabeleciam contato com especialistas em algumas oportunidades. No entanto, a frequência com que os especialistas nunca contatavam os profissionais de Atenção Básica foi mais expressiva (68,2%; n=426), mostrando uma disparidade nas informações.

Quanto à presença de algum fluxo de comunicação institucionalizado, 389 equipes (62,2%) responderam negativamente ou que desconhecem. Aquelas que referiram possuir fluxo institucional de comunicação mencionaram que a equipe utilizava os seguintes: discussão de casos (21,2%; n=50), ficha de referência/contrarreferência com história detalhada e sugestões de conduta (85,2%; n=201), reuniões técnicas com os especialistas da rede (10,6%; n=25), teleconferência (1,3%; n=3), telessaúde (0,8%; n=2), comunicação eletrônica (3%; n=7). Nenhuma utilizava prontuário eletrônico. 122 equipes relataram ter telefone como canal disponível na unidade de saúde para que o contato se efetive, enquanto que apenas 13 possuíam internet para esse fim.

Apesar de 29,8% (n=186) das equipes referirem que havia uma lista de contato na UBS com os especialistas da rede SUS com telefones e/ou e-mails, apenas 25% (n=156) delas comprovaram com documentos.

Discussão

Mundialmente, as recomendações para a organização dos serviços e para as práticas dos profissionais estão corroborando com os parâmetros estabelecidos em âmbito internacional: o sistema de saúde deve ter como porta de entrada e principal ponto de contato a Atenção Primária à Saúde, a qual necessita ter resolutividade e fundamentar-se no vínculo e no cuidado longitudinal, modificando os padrões e os estilos de vida da população atendida (SOUZA; MENANDRO, 2011SOUZA, L. G. S.; MENANDRO, M. C. S. Atenção primária à saúde: Diretrizes, desafios e recomendações. Revisão de bibliografia internacional. Physis, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 517-539, 2011.). Nesse contexto, o PMAQ-AB veio incentivar o fortalecimento da Atenção Básica como o primeiro contato, de forma acolhedora e resolutiva para o conjunto das necessidades de saúde, além de possibilitar a criação de condições concretas para a garantia e coordenação da continuidade do cuidado nas linhas de cuidado priorizadas nas redes (PINTO; SOUSA; FLORÊNCIO, 2012PINTO, H. A.; SOUSA, A.; FLORÊNCIO, A. R. O Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: Reflexões sobre o seu desenho e processo de implantação. RECIIS, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 31 ago. 2012.). O acesso aos serviços públicos de saúde é um elemento essencial na avaliação da qualidade e direito qualificado da população, independente da complexidade do serviço (VAITSMAN; ANDRADE, 2005VAITSMAN, J.; ANDRADE, G. R. B. Satisfaction and responsiveness: ways to measure quality and humanization of health assistance. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 599-613, set. 2005.).

Na Paraíba, os resultados da Avaliação Externa demostram que ainda não há uma fluidez para o alcance dos usuários aos níveis secundários de atenção, pois, quando analisado o caminho para uma consulta especializada aplicada pela unidade de saúde, apenas em 10,2% das EqSF os usuários saem da unidade de saúde com a consulta agendada e 47,2% das vezes a consulta é marcada pela unidade de saúde e a data é posteriormente informada ao usuário. Esse dado é importante, pois mostra a existência de problemas no fluxo que podem ser atribuídos à falta de planejamento e organização, gerando tempo médio de espera relativamente alto e insatisfação dos usuários. Alguns trabalhos na literatura concordam que é frequente a dificuldade de acesso dos usuários das UBS aos serviços de referência do país (CONILL; GIOVANELLA; ALMEIDA, 2011CONILL, E. M.; GIOVANELLA, L.; ALMEIDA, P. F. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2783-2794, 2011.; CUNHA; VIEIRA-DA-SILVA, 2010CUNHA, A. B. O.; VIEIRA-DA-SILVA, L. M. Acessibilidade aos serviços de saúde em um município do Estado da Bahia, Brasil, em gestão plena do sistema Health services accessibility in a city of Northeast Brazil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 725-737, 2010.; MARIN; MARCHIOLI; MORACVICK, 2013MARIN, M. J. S.; MARCHIOLI, M.; MORACVICK, M. Y. A. D. Fortalezas e fragilidades do atendimento nas unidades básicas de saúde tradicionais e da estratégia de Saúde da Família pela ótica dos usuários. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 780-788, 2013.; SANTIAGO , 2013SANTIAGO, R. F. et al. Quality of care in the family healthcare units in the city of Recife: user perception. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 1, p. 35-44, jan. 2013.). Tal constatação não deveria acontecer, pois os sistemas de saúde que tem como base a atenção primária devem assegurar os fluxos de ação diagnósticos e terapêuticos adequados. Além disso, ressalta-se que problemas de espera para os demais serviços especializados diminuem a credibilidade deste nível de atenção, assim como barreiras para o acesso ou técnicas inadequadas do cuidado na porta de entrada suscitam processos de utilização pouco eficientes dos serviços especializados e hospitalares (CONILL; GIOVANELLA; ALMEIDA, 2011CONILL, E. M.; GIOVANELLA, L.; ALMEIDA, P. F. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2783-2794, 2011.).

No trabalho de Santiago . (2013)SANTIAGO, R. F. et al. Quality of care in the family healthcare units in the city of Recife: user perception. Ciência & Saúde Coletiva, v. 18, n. 1, p. 35-44, jan. 2013., a dimensão da acessibilidade foi avaliada negativamente devido à grande insatisfação com o tempo de espera relativa ao agendamento de consulta especializada e a marcação de consulta na unidade, embora os usuários tenham realizado uma boa avaliação quanto à distância da sua casa até a unidade de saúde. Os autores lembram que a insatisfação refere-se a um dos principais objetivos da unidade de Saúde da Família, porta de entrada para uma rede de serviços resolutivos de acesso universal e ressaltam que essas dificuldades estão relacionadas à organização do serviço de saúde e à garantia de acesso à atenção especializada em tempo oportuno e resolutivo. Um dos problemas que podemos inferir é o excesso de referências, que pode surgir pela utilização inadequada da atenção especializada.

Na Inglaterra, por exemplo, para reduzir o tempo da trajetória do paciente na continuidade dos tratamentos, foram definidas metas integradas para cada etapa, incluindo consultas com especialistas, realização de exames, referência para outros especialistas e o tratamento cirúrgico. Essa alternativa tem tido êxito devido à implantação agressiva de um sistema robusto de gestão de desempenho, ao rigor das metas e aumento do financiamento (WILLCOX , 2007WILLCOX, S. et al. Measuring and reducing waiting times: a cross-national comparison of strategies. Health Affairs, Bethesda, v. 26, n. 4, p. 1078-1087, 7 jan. 2007.). Se forem observados apenas certos dados, tem-se o retrato de um processo de racionalização gerencial relevante em curso no processo vigente de reforma do sistema inglês, demandado por necessidades de equilíbrios fiscais. Entretanto, quando se muda de perspectiva, vê-se que tal processo está sendo implementado dentro da lógica do Managed Care, que é um dos protótipos mais bem desenvolvidos do modelo neoliberal na saúde e vem invadindo o National Health Services (NHS), sistema de saúde inglês.

Uma crítica relevante à expansão do Managed Care para os sistemas de saúde latino-americanos já havia sido desenvolvida desde o início dos anos 2000 (IRIART; MERHY; WAITZKIN, 2001IRIART, C.; MERHY, E. E.; WAITZKIN, H. Managed care in Latin America: the new common sense in health policy reform. Social Science & Medicine, Oxford, v. 52, n. 8, p. 1243-1253, 2001.), mas a expansão de tal perspectiva para o sistema inglês, intensificada nos últimos anos, tem levado a pôr em questão o caráter efetivamente público desse que é uma das referências para os sistemas universais de saúde implementados desde o pós-guerra. Dessa forma, é preciso analisar tal experiência para se evitar que a ênfase em melhorias gerenciais, bem como processos relevantes de gestão por resultados, como os desencadeados pelo PMAQ-AB, resulte em relevantes retrocessos dentro de uma perspectiva micropolítica do debate público-privado.

Também foi observado que grande parte das equipes não mantém registros dos usuários que apresentaram maior risco e que foram encaminhados para outros pontos de atenção. Constatou-se que a existência de documentos que comprovem tais registros é pouco frequente. Com respeito às fichas de encaminhamento dos usuários para os demais pontos de atenção, predominou o relato das equipes referindo possuí-las (85,8%), havendo decréscimo deste percentual ao serem solicitados documentos que comprovariam a existência das mesmas. Esses documentos são importantes para continuidade da atenção, pois implicam no reconhecimento, por parte do serviço que está atendendo o usuário, das informações procedentes do serviço que o encaminhou, relacionadas ao atendimento presente.

Protocolos com definição de diretrizes terapêuticas e priorização de casos para referenciar a outros pontos da rede de atenção são importantes para auxiliar na organização do processo de trabalho no cuidado aos usuários. No entanto, em nossa pesquisa, contatou-se que 75% das unidades responderam não possuir. É interessante notar que quando foi perguntado se existiam diretrizes terapêuticas para alguns casos específicos, poucas unidades referiram tê-las para as linhas de cuidado relativas à saúde mental (18,7%) e a álcool e drogas (14,1%). Esses dados corroboram com a realidade da saúde mental nos últimos anos que, apesar das conquistas, apresenta pontos de fragilidade, como a referência e a contrarreferência, a ausência de capacitação e a ausência de orientação com maior foco na família (MARTINS; BRAGA; SOUZA, 2012MARTINS, A. K. L.; BRAGA, V. A. B.; SOUZA, A. M. A. Práticas em saúde mental na estratégia Saúde da Família: um estudo bibliográfico. Rev Rene, Fortaleza, v. 10, n. 4, 2012.; ONOCKO-CAMPOS , 2012ONOCKO-CAMPOS, R. T. et al. Evaluation of innovative strategies in the organization of Primary Health Care. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 43-50, fev. 2012.).

Por sua vez, por exemplo, em um estudo em Madri foi observada uma estratégia para aproximar profissionais e qualificar a atenção primária ao uso dos 'especialistas consultores', que se deslocam dos hospitais para interconsultas, sessões clínicas, capacitações e elaboração conjunta de protocolos, o que proporcionou a ampliação dos turnos de atendimentos nos hospitais e carga horária de especialistas com maior demanda (CONILL; GIOVANELLA; ALMEIDA, 2011CONILL, E. M.; GIOVANELLA, L.; ALMEIDA, P. F. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2783-2794, 2011.).

No Brasil, com o surgimento da Programação Pactuada e Integrada (PPI), ficou evidenciada a delimitação por níveis de competência e complexidade da rede de serviços e levou à necessidade de estabelecer os fluxos de referência e contrarreferência e à regulação desses, garantindo-se que os pactos sejam efetivamente cumpridos e revistos de acordo com a necessidade demandada e a capacidade física instalada. A partir da publicação do Decreto Presidencial 7508/2011, com a regulamentação de diversos aspectos da lei orgânica da saúde, vem se tentando avançar na implementação do Pacto pela Saúde, tendo como estratégia a elaboração pactuada entre gestores das três esferas do Contrato Organizativo de Ação Pública da Saúde (COAP). Como parte do COAP, se propõe a (re)construção de pactuações quanto às redes regionais de saúde, sendo necessário formalizar tais arranjos através da elaboração da Programação Geral de Ações e Serviços de Saúde, que tem a PPI como uma das referências, além de outras programações vigentes. A estruturação das ações de regulação assistencial deve ocorrer por meio da implantação de complexos reguladores, entendidos como uma ou mais centrais de regulação que, por sua vez, desenvolvem ações específicas como a regulação das urgências, das consultas especializadas, de exames, de leitos, de equipamentos, dentre outras (BRASIL, 2006______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas, Coordenação-Geral de Regulação e Avaliação. Diretrizes para a implantação de complexos reguladores.Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006.).

A regulação do acesso são estruturas operacionais que gerenciam a relação entre a demanda e a oferta de serviços de saúde existentes na rede, respeitando critérios de risco, os protocolos, e a logística do município, e têm como finalidade organizar os fluxos e contrafluxos de pessoas, produtos e informações ao longo das redes (FURTADO, 2007FURTADO, J. P. Equipes de referência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 11, n. 22, p. 239-55, 2007.). Os gestores devem ser conscientizados da necessidade das ações de regulação para o SUS, pois, segundo as Diretrizes para a Implantação de Complexos Reguladores (BRASIL, 2006______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas, Coordenação-Geral de Regulação e Avaliação. Diretrizes para a implantação de complexos reguladores.Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006.), essas reforçam e qualificam as funções de gestão, otimizam os recursos de custeio da assistência, qualificam o acesso e, consequentemente, proporcionam aos usuários do SUS uma melhor oferta das ações governamentais voltadas à saúde. Em nosso estudo, constatou-se que a maioria das equipes da Paraíba refere ter central de regulação disponível, principalmente para marcação de consulta especializada e exames. No entanto, apenas poucos profissionais relataram que os usuários saem com a consulta agendada quando encaminhados para uma consulta especializada, o que pode ser devido às equipes ainda estarem centralizadas e, possivelmente, com difícil acesso pelos usuários, ou melhor, as equipes estão disponíveis no município, mas não estão localizadas nas UBS.

A despeito disso, Ferreira (2010)FERREIRA, J. B. B. et al. The regulatory complex for healthcare from the perspective of its operational players. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 14, n. 33, p. 345-358, 2010. observaram que o tempo para marcação de consultas especializadas no sistema público de saúde de Ribeirão Preto - SP, antes de possuir Central de Regulação (CR), variava entre as unidades de saúde e entre as especialidades, mostrando desorganização na oferta e utilização dos recursos assistenciais, tanto nos serviços próprios quanto nos conveniados. No entanto, com a Central de Regulação produziu decréscimo na demanda reprimida e uma redução sensível do tempo de espera. É pertinente ressaltar que o CR favorece a interligação dos pontos da rede pela reorganização do fluxo e promove uma capacidade sistemática de responder às demandas e às necessidades de saúde de seus usuários nas diversas etapas do processo assistencial (SERRA; RODRIGUES, 2010SERRA, C. G.; RODRIGUES, P. H. A. Avaliação da referência e contrarreferência no Programa Saúde da Família na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 3579-3586, 2010.).

O desenvolvimento de acordos interfederativos entre as três esferas governamentais, voltados à estruturação de redes regionais de atenção à saúde e à promoção de inovações nos processos e instrumentos de gestão do SUS, na perspectiva de organizá-lo loco-regionalmente (FURTADO, 2007FURTADO, J. P. Equipes de referência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 11, n. 22, p. 239-55, 2007.), busca fortificar a capacidade de resposta das necessidades dos usuários e assegurar a equidade social. Com vistas a esse aspecto, este ainda é pouco aplicado na Paraíba, dado que equipes que mencionam possuir documentos contendo as referências e fluxos pactuados relativos ao território da equipe pela gestão municipal para os atendimentos de usuários são apenas 41,1%, e, quando foi requerida comprovação desses documentos, houve um decréscimo para 26,9%.

Alguns fluxos essenciais para Atenção Básica foram questionados quanto à presença de diretrizes como: casos de suspeita de câncer de mama ou de colo do útero, parto, exame sorológico na gestante para sífilis ou anti-HIV, exame de glicose, urocultura ou sumário de urina, exame de ultrassonografia para gestante e urgência. Entretanto, grande parte dos profissionais (57,1%) respondeu negativamente. A definição das diretrizes dos fluxos e contrafluxos de atendimento e o mapeamento da rede de serviços de saúde, por gestores e profissionais da saúde, são importantes, pois estabelecem a base para o sistema de referência para população.

Este aspecto também é comentado por Serra e Rodrigues (2010)SERRA, C. G.; RODRIGUES, P. H. A. Avaliação da referência e contrarreferência no Programa Saúde da Família na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 3579-3586, 2010., que realizaram uma pesquisa na Zona Norte do município do Rio de Janeiro e em Duque de Caxias/RJ, onde se constatou que havia uma carência ou utilização deficiente de protocolos clínicos e que os encaminhamentos para os serviços de referência eram pouco apoiados nas diretrizes e nos protocolos clínicos existentes, ou ainda, não eram sempre considerados pelos médicos. Por isso, esses autores enfatizaram a necessidade de uma educação permanente e um envolvimento desses profissionais para adaptação das diretrizes e dos protocolos à realidade local.

É mister registrar que a troca de informações entre os profissionais da EqSF e especialistas é fundamental. No entanto, esta pesquisa mostra que na Paraíba a maior parte das equipes relatou nunca haver troca de informações entre os profissionais de saúde e especialistas sobre os pacientes encaminhados e, quando se contatavam, na maioria das vezes os profissionais de saúde da UBS procuravam mais os especialistas que o oposto. Essa dificuldade em contatar pode se dar devido a somente 25% das equipes possuírem uma lista com os contatos, seja um telefone ou um e-mail, dos especialistas da rede SUS na Unidade Básica de Saúde.

Esses dados corroboram com a pesquisa de Serra e Rodrigues (2010)SERRA, C. G.; RODRIGUES, P. H. A. Avaliação da referência e contrarreferência no Programa Saúde da Família na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 3579-3586, 2010., que encontraram sistemas de informação e comunicação precários em UBS do Rio de Janeiro e Duque de Caxias. Muitas equipes não possuíam telefones ou computadores em rede e a comunicação era feita através de formulários em papel, além de nunca ou quase nunca haver a contrarreferência, o que fez esses autores concluírem que o sistema de referência e contrarreferência era comprometido, assim como a necessária integralidade e continuidade dos cuidados.

É função da APS exercer o papel de centro de comunicação das redes de atenção à saúde, o que significa ter condições de ordenar os fluxos e contrafluxos das pessoas, dos produtos e das informações entre os diferentes componentes das redes, ou seja, coordenar o cuidado (FURTADO, 2007FURTADO, J. P. Equipes de referência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 11, n. 22, p. 239-55, 2007.). No entanto, 37% das equipes relatam a existência de um fluxo de comunicação institucionalizado na Paraíba e, destas, a grande maioria é feito por ficha de referência/contrarreferência com história detalhada e sugestões de conduta. Apenas 32,2% relataram possuir disponível para esse contato o telefone e 2,1% internet.

De certa forma, a análise de alguns dados (equipes que não acompanham especificamente a evolução dos de maior risco encaminhados, os profissionais da AB não contatam os especialistas e vice-versa, inexistência de fluxo de comunicação institucionalizado, dentre outros) sugere que o encaminhamento dos usuários para serviços especializados não tem permitido às equipes da AB desempenharem o papel de efetivas coordenadoras do cuidado. Ao fazer encaminhamentos sem conseguir desenvolver um adequado acompanhamento dos desdobramentos ocasionados a partir desse momento, as equipes deixam de compartilhar com os usuários e profissionais dos serviços secundários ou terciários as decisões a serem tomadas. Assim, reduzem sua capacidade de intervenção de modo a participar de um cuidado integral produzido em redes.

É importante perceber que, apesar de ser um sistema baseado em princípios de territorialização e da coordenação das ações e existir há várias décadas, existe ainda uma fragilidade na integração entre APS e cuidados especializados no âmbito do SUS, pois, na maioria das vezes, funcionam como estruturas de gestão separadas (CONILL; FREIRE; GIOVANELLA, 2011CONILL, E. M.; FREIRE, J. M.; GIOVANELLA, L. Challenges to Latin American health systems: some issues that can be focused by comparative analysis. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2670-2670, jun. 2011.). Porém, existe uma visão que sistemas fragmentados de saúde manifestam-se, entre outros aspectos, como sistemas que se organizam por meio de um conjunto de pontos de atenção à saúde isolados e incomunicáveis uns com os outros, tornando-se incapazes de prestar uma atenção contínua à população em que a Atenção Primária à Saúde não se comunica fluidamente com a atenção secundária, e esses dois níveis também não se articulam com a atenção terciária à saúde (OPAS, 2011ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). A atenção à saúde coordenada pela APS: construindo as redes de atenção no SUS: contribuições para o debate. Brasília, DF, OPAS, 2011.).

É importante registrar que no conceito de Redes de Atenção à Saúde, o território é uma dimensão fundamental e a análise de um estado específico, como a Paraíba, é importante, pois a magnitude dos problemas de saúde modifica significativamente de acordo com o local ou região, interferindo nas definições da composição de cada nível da atenção à saúde, e envolvem tecnologias de diferentes complexidades e custos.

Por sua abrangência nacional, o PMAQ-AB fornece dados generalizados e, consequentemente, tem alto nível de precisão. Por outro lado, podemos encontrar algumas limitações quando utilizamos dados secundários, como a restrição da análise dos dados organizados e elaborados por outros que não os pesquisadores usuários dessas informações. Dessa forma, os resultados apresentados neste trabalho podem contribuir em uma avaliação mais impactante nas políticas públicas que buscam dirimir as desigualdades em saúde.

Conclusão

Neste trabalho, na perspectiva dos profissionais da Atenção Básica, constatou-se que o sistema de referência e contrarreferência no estado da Paraíba encontra-se com uma clara fragilidade na articulação entre: as instâncias gestoras do sistema e entre essas e a gerência dos serviços; entre os serviços de saúde e entre esses e os de apoio diagnóstico e terapêutico; e entre as práticas clínicas desenvolvidas por diferentes profissionais de um ou mais serviços voltadas a um mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos. Essa situação pode ser explicada pelo desconhecimento dos profissionais sobre o fluxo do serviço, por uma falta de planejamento e definição desse fluxo, ou por uma fragmentação do sistema de referência e contrarreferência no estado da Paraíba. Isso é relevante e preocupante já que existe hoje uma percepção generalizada de que sistemas fragmentados de saúde fracassaram internacionalmente, além de se mostrarem descredibilizados tanto entre usuários como gestores (OPAS, 2011ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). A atenção à saúde coordenada pela APS: construindo as redes de atenção no SUS: contribuições para o debate. Brasília, DF, OPAS, 2011.).

Para um melhor conhecimento dos profissionais sobre o fluxo, pode-se ter como alternativa a realização de ações efetivas de educação permanente com atores envolvidos nesse fluxo (trabalhadores das distintas redes de atenção e gestores), além da formulação de estratégias de aproximação entre os profissionais que atuam na Atenção Básica, com aqueles que atuam nos demais níveis da rede de serviços de saúde. Outra alternativa seria a criação conjunta entre profissionais da AB, especialistas e gestores de um protocolo de acesso às especialidades com maior procura no município, que reformulasse o fluxo e o sistema de agendamento, e também incluísse a informatização das UBS.

Diante de tudo que foi descrito, pode-se concluir que a construção de um sistema integrado é um desafio de alta complexidade para o SUS, que se dá a partir da Atenção Básica e deve ser organizado de forma que seja articulado no âmbito regional respeitando a autonomia de gestão de cada município. Para isso, deve haver melhor organização e reestruturação dos serviços, reformulação das práticas dos profissionais de saúde em suas equipes e, nesse contexto, melhorar o princípio da integralidade da Atenção Básica. Desenvolver ações pautadas em pesquisas de avaliação dos serviços, principalmente de forma ampla como o PMAQ-AB, faz-se importante, pois, além de dar suporte para uma análise crítico-reflexiva promove, de uma forma segura, ações para aumentar a capacidade e o desempenho da EqSF como porta de entrada do SUS.

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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2014

Histórico

  • Recebido
    Abr 2014
  • Aceito
    Set 2014
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