Reforma das comunicações: imperativo para a democracia no Brasil

Communications reform: imperative for democracy in Brazil

Bia Barbosa Helena Martins Sobre os autores

Introdução

Vivemos em uma sociedade marcada pelo constante fluxo de comunicação. Televisores, rádios, celulares, computadores e outros meios permeiam nosso cotidiano. Por meio deles, recebemos conteúdos que nos ajudam a compreender o mundo, formar nossa identidade, elencar os temas da conversa com amigos, familiares e colegas de trabalho, construir opinião e participar da vida política do País. No entanto, apesar da centralidade que os meios de comunicação adquiriram, eles ainda são tratados majoritariamente como espaços privados; já os conteúdos, como mercadorias trocadas pela publicidade e pela própria audiência. Como resultado disso, temos a exclusão das maiorias sociais da mídia e o controle da informação.

No Brasil, desde os anos 1930, quando o sistema começou a ser efetivamente organizado, optou-se pela adoção do modelo comercial para a prestação do serviço de radiodifusão, mantendo o controle centralizado no Poder Executivo, especialmente quanto à competência de conceder outorgas. O modelo privilegiou a acomodação de interesses entre os agentes privados e o Estado, caso da separação da regulação da infraestrutura e do conteúdo. Na esteira desse processo, a radiodifusão tornou-se marcada pela concentração da propriedade; presença dominante de grupos familiares e vinculação às elites políticas locais11 Lima VA. Mídia, Teoria e Política. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2004., com consequências seríssimas para a nossa democracia.

Afinal, parte-se da compreensão de que democratizar os meios de comunicação é fundamental para garantir pluralidade de agentes e diversidade de conteúdos e opiniões. Essa premissa está respaldada pela Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)22 Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 2000 [acesso em 2015 maio 10]. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm.
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. Ela, em seu princípio 12, estabelece que monopólios e oligopólios

devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação.

Em documento de 2009, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH foi ainda mais explícita ao afirmar que os Estados membros deveriam promover um enfoque pluralista da informação, fomentar o pleno exercício da liberdade de expressão, o acesso aos meios de comunicação e a diversidade de proprietários e fontes por meio, entre outros, de

sistemas transparentes de concessão de licenças e, conforme o caso, regramentos eficazes que impeçam a concentração indevida da propriedade dos meios de comunicação33 Organização dos Estados Americanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Estándares de libertad de expresión para una radiodifusión libre e incluyente. 2009 [acesso em 2015 maio 10]. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/publicaciones/Radiodifusion%20y%20libertad%20de%20expresion%20FINAL%20PORTADA.pdf.
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.

O texto afirma que o controle dos meios de comunicação como um monopólio ou oligopólio afeta a democracia, visto que esta necessita do enfrentamento de ideias. A concentração, ao contrário, leva à redução de fontes informativas; homogeneização de gêneros e formatos; unificação de linha editorial; resistência de grupos concentrados a desempenhar funções de serviço público; conflitos de interesses por parte dos grupos que, além de possuírem veículos, participam de outros mercados; desenvolvimento de um sistema de apropriação de direitos exclusivos de transmissão de espetáculos e esportes; centralização geográfica da programação e da produção de conteúdos e autocensura por parte dos trabalhadores, conforme aponta o documento.

Adequada, do ponto de vista normativo, aos padrões internacionais de promoção da liberdade de expressão e da diversidade e da pluralidade, a Constituição Federal brasileira44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2018 out 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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de 1988 trouxe uma série de princípios que deveriam - pelo menos desde sua aprovação - balizar o funcionamento do sistema de comunicação no País. Fruto da participação de entidades da sociedade civil no processo constituinte, nossa Carta Magna traz artigos progressistas sobre o tema. Estabelece, por exemplo, princípios norteadores da produção e da programação das emissoras de rádio e televisão (art. 221), proíbe o monopólio e o oligopólio nos meios de comunicação (art. 220) e fixa que os sistemas público, privado e estatal devem ser complementares (art. 223), entre outras medidas. Esses três artigos, contudo, não encontram detalhamento na legislação infraconstitucional, tornando-se letra quase morta.

As poucas regras objetivas que tratam da regulação do setor datam ainda do período da ditadura militar. É o art. 12 do Decreto-Lei nº 236/1967 que estabelece a quantia que cada entidade pode ter de permissões (dadas a emissoras de caráter local) e concessões (de caráter nacional) para executar o serviço de radiodifusão. No caso da televisão, o texto normativo permite até cinco geradoras operando na frequência VHF (Very High Frequency) por proprietário em todo o País, sendo, no máximo, duas por estado.

Na prática, porém, a formação de redes tem sido historicamente utilizada pelos diversos grupos econômicos que controlam a radiodifusão no País para ir além dos limites legais autorizados, fazendo com que uma cabeça de rede - como a TV Globo Rio de Janeiro - imponha a transmissão de sua programação para afiliadas em todo o País.

A constituição de redes é apontada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) como fundamental na definição do mercado de TV aberta no Brasil. No Mapeamento da TV aberta de 2010, a agência reconheceu que as afiliadas "oferecem audiência às emissoras, em troca de programação, gerando assim mais audiência e anúncios a ambas"55 Agência Nacional do Cinema. Mapeamento TV Aberta, 2010. [acesso em 2018 set 25]. Disponível em: https://www.ancine.gov.br/media/SAM/Estudos/Mapeamento_TVAberta_Publicacao.pdf.
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(23). Notou ainda que as geradoras funcionam como retransmissoras de programação e que a infraestrutura pública serve para dar suporte, de Norte a Sul, a negócios privados. Apesar dessa importância, a Ancine assinalou que nem a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) nem o então Ministério das Comunicações possuíam o mapeamento das redes de TV.

Outras questões importantes e comuns ao ordenamento jurídico, inclusive de democracias liberais, como a dos Estados Unidos, não foram adotadas na legislação brasileira, resultando em ainda maior concentração dos meios. A proibição da propriedade cruzada - grupos que controlam emissoras de rádio e TV não podendo, por exemplo, operar no mercado de jornais e revistas - não faz parte da nossa realidade. Pelo contrário, a propriedade de mídias diversas é uma das principais características da comunicação comercial existente no País. Esse tipo de acúmulo é proibido apenas no caso dos Serviços de Acesso Condicionado (SeAC), como a TV por assinatura, regra estabelecida após a aprovação da Lei nº 12.485, em 2011. O texto proíbe que empresas de telecomunicações controlem empresas de radiodifusão e vice-versa e impede que os serviços de cada setor sejam prestados por um grupo que atua no outro. Contudo, em relação à televisão aberta, ao rádio, aos impressos e mesmo à internet, não há limitação.

Os resultados da concentração na propriedade dos meios

Em 2015, a pesquisa Mídia Dados Brasil, feita pelo Grupo de Mídia de São Paulo66 Grupo de Mídia de São Paulo. Mídia Dados Brasil. 2015 [acesso em 2016 fev 10]. Disponível em: http://gm.org.br/midia-dados.
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, apontava que, apenas com a televisão, a Rede Globo chegava a 98,6% dos municípios brasileiros; o SBT, a 85,7%; a Record, a 79,3%; já a Band alcançava 64,1% e a Rede TV, 56,7%. Nenhuma outra emissora chegava a dois dígitos. A concentração no setor televisivo no Brasil também é aguda quando o tema é a audiência. Segundo dados do Kantar Ibope de 2016, a líder Globo obteve naquele ano, em média, 36,9%; o SBT, 14,9%. Bem próximo a isso, a Record chegou a 14,7%; enquanto a Band, a 4,1%. Todas as demais emissoras somadas totalizaram 28,9%.

De acordo com o comparativo do Media Ownership Monitor (MOM), aplicado em 2017 no Brasil pela organização Repórteres Sem Fronteiras em parceria com o Intervozes, o Brasil apresenta o cenário mais grave de riscos ao pluralismo em relação aos indicadores de riscos à pluralidade na mídia de outros dez países analisado pela iniciativa.

De acordo com o MOM, apesar de toda a diversidade regional existente no Brasil e das dimensões continentais de nosso território, a concentração exorbitante dos quatro principais grupos de mídia vem crescendo ainda mais diante das estratégias de adaptação de tais grupos ao contexto de convergência tecnológica e do uso de múltiplos dispositivos de comunicação. Ademais, com um modelo de negócios focado em explorar, ao máximo, a capacidade comercial do tempo de TV e a disseminação de conteúdos a partir das chamadas 'cabeças de rede', mesmo as transmissões locais têm uma narrativa praticamente uniforme, baseada no eixo Rio-São Paulo e que expressam interesses da classe, do gênero e da etnia das pessoas que os controlam.

Nem o processo de digitalização da televisão aberta, iniciado em 2006 e ainda em curso, possibilitou a desconcentração do setor, já que o padrão de TV digital adotado, escolhido pelo Estado sob pressão das empresas de radiodifusão representadas pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), privilegiou a destinação do espectro para a transmissão de sons e imagens em alta definição - impedindo a ocupação deste bem público por mais agentes.

Esse predomínio de poucos grupos comerciais controlando a radiodifusão, como afirmado anteriormente, não é recente. Desde que a primeira emissora de rádio se instalou no País, nos anos 1930, ele vem sendo possibilitado, por um lado, pela pressão direta dos capitais particulares e, por outro, pela postura omissa e conivente do Estado brasileiro. Como resultado disso, historicamente, as empresas têm definido as políticas de comunicação. Exemplo ilustrativo dessa lógica, o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), de 1962 - até hoje a principal lei que rege o setor -, foi bastante influenciado pelas empresas, que se organizaram e constituíram a Abert. À época, todos os 52 vetos ao CBT feitos pelo então Presidente João Goulart no sentido de ampliar a diversidade de meios no País foram posteriormente derrubados pelo Congresso Nacional por atuação da Abert77 Bolaño CRS. Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? São Paulo: Paulus; 2007.. Aos problemas então constatados por Jango, como o largo prazo das concessões (15 anos para televisão e 10 para rádio), somaram-se outros nos últimos anos. Aprovada quando a transmissão de TV em cores ainda estava em fase de testes, hoje a lei não responde à reconhecida importância sobre o papel das comunicações em sociedade democráticas, tampouco aos desafios da convergência tecnológica, que tem levado à ampliação da concentração.

Outro elemento que contribui para perpetuar o controle de emissoras e redes de comunicação nas mãos de poucos grupos é a ausência de transparência e discussão no processo de outorga das concessões. A legislação vigente aponta que, após o vencimento do prazo da outorga (15 anos para televisão e 10 para rádio), deve haver a avaliação da prestação do serviço e do cumprimento das finalidades estabelecidas, para então ser viabilizada a renovação do serviço (art. 67, parágrafo único, da Lei nº 4.117/1962)88 Brasil. Presidência da República. Lei nº 4.117, 27 de agosto de 1962 [internet]. Institui o Código Brasileiro de Telecomunicações. Diário Oficial da União. 28 Ago 1962. [acesso em 2018 set 25]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4117.htm.
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Ocorre que, segundo a Constituição Federal (artigos 49, XII e art. 223), a outorga e a renovação dos serviços de radiodifusão são de responsabilidade do Poder Executivo (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e Presidência da República, no caso de televisão) e devem ser confirmadas pelo Congresso Nacional. Todavia essa renovação em geral ocorre de forma automática, sem transparência ou participação da sociedade. Situação que se explica também porque a não renovação das outorgas depende do voto aberto de dois quintos do Parlamento (Câmara dos Deputados e Senado Federal, em sessão conjunta). Em um contexto em que 32 deputados e 8 senadores (números da atual legislatura, que se encerra em 2018) são proprietários diretos de emissoras de radiodifusão, a não renovação de uma licença parece impensável.

O vale tudo na exploração das outorgas

Para além do impacto no âmbito legal, a posse de meios de comunicação por políticos - resultado de décadas de uso das concessões de rádio e TV como moeda de troca política - gera distorções preocupantes nos processos democráticos, sobretudo em períodos eleitorais. O uso político de canais de radiodifusão por deputados, governadores, senadores, prefeitos, ministros e secretários de governo, em benefício das elites políticas do País, coloca tais veículos a serviço de seus proprietários, seja para atacar adversários ou para propagandear aliados eleitorais.

O episódio marcante desse uso ocorreu durante a gestão de José Sarney na Presidência da República. O então Ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães distribuiu nada menos que 1.028 outorgas durante sua gestão. Apenas no mês anterior à promulgação da Constituição de 1988, foram distribuídos 25% desse total. O objetivo era claro: trocar as concessões por apoio às propostas defendidas pelo governo na Assembleia Constituinte. ACM não deixou, inclusive, de se beneficiar com outorgas. Na época, ele também convenceu Roberto Marinho a transformar a TV Bahia, de sua propriedade, em afiliada da Rede Globo. A relação foi fundamental para a manutenção do poder da família Magalhães22 Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 2000 [acesso em 2015 maio 10]. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm.
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. O mesmo ocorreu com a família Collor, em Alagoas, e Barbalho, no Pará, entre outras.

É fundamental lembrar que a posse de concessões por políticos contraria o que diz o art. 54 da Constituição Federal, que declara que deputados federais e senadores não podem, desde a expedição de seu diploma parlamentar,

firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2018 out 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Após a posse, os parlamentares ficam proibidos de

ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoas jurídicas de direito público, ou nela exercer função remunerada44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2018 out 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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O CBT (art. 38, parágrafo único) e o Decreto nº 52.795/1963 (art. 15, §5º, b) também deixam claro que quem estiver no gozo de imunidade parlamentar ou de função que assegure foro especial não poderá exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de radiodifusão.

Em defesa da aplicabilidade das normas citadas, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ações civis públicas na Justiça Federal contra parlamentares proprietários de canais de televisão e de rádio que teriam votado em causa própria, entre janeiro de 2003 e dezembro de 2005, na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara Federal. Desde 2015, o órgão tem movido ações em diferentes estados pedindo a anulação de outorgas concedidas a emissoras controladas por deputados federais e senadores. Já houve decisões favoráveis ao pleito em primeira instância.

No Supremo Tribunal Federal (STF), também tramita, desde 2011, uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), elaborada pelo Intervozes e ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tratando do tema. A ação questiona a outorga e a renovação de concessões de radiodifusão a pessoas jurídicas que tenham políticos com mandato eletivo em seu quadro social e pede a proibição da diplomação e a posse de políticos que sejam, direta ou indiretamente, sócios de pessoas jurídicas concessionárias de radiodifusão. Apesar da importância da matéria, ainda não há previsão de quando a ADPF será votada. A relatoria está nas mãos do ministro Gilmar Mendes.

Outra prática que viola os princípios da Constituição Federal é a transferência direta de outorgas, que ocorre quando uma pessoa jurídica passa para outra (na maioria das vezes, por meio de contratos comerciais de gaveta) a outorga para prestação do serviço de radiodifusão. Embora a legislação nacional autorize a prática, determinando que a transferência depende de anuência prévia do Poder Executivo, essa autorização colide frontalmente com o artigo 175 da Constituição, que fixa que a prestação de serviços públicos sob o regime de concessão ou permissão deverá ocorrer sempre por meio de licitação. Portanto, se um concessionário não deseja ou não tem mais condições de prestar o serviço de radiodifusão, sua outorga deve ser devolvida ao Estado e repassada a outro prestador mediante nova licitação.

A transferência acertada entre pares, sem concorrência ou debate público, impede que outros grupos da radiodifusão privada, pública ou comunitária possam ter acesso às licenças. Sem o procedimento licitatório, existente exatamente para garantir legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade em todo o processo (art. 10 do Decreto nº 52.795/1963), a possibilidade de novas vozes ocuparem esse espaço público acaba sendo inviabilizada.

Vale lembrar ainda o fenômeno, cada vez mais frequente, do uso totalmente privado e em desrespeito ao interesse público na gestão das outorgas de rádio e TV: o arrendamento, isto é, a comercialização de parte do espaço da programação para terceiros. Ele se baseia na negociação de um bem público também sem prévia licitação. Ao terceirizar parte de sua grade - muitas vezes apenas por critérios econômicos, de quem paga mais -, o concessionário escolhe - e, assim, beneficia - um terceiro que não participou da competição pela licença, mas que vai ocupar um espaço público. Na prática, ocorre uma subconcessão, algo não previsto nas regras para a radiodifusão no País. Mesmo se fosse considerada a norma que trata dos serviços públicos, Araújo1010 Intervozes. Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil: como combater as ilegalidades no rádio e na TV. 2015 [acesso em 2018 junho 15]. Disponível em: http://intervozes.org.br/arquivos/interman004cldcnb.pdf.
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sustenta que ainda há flagrante desrespeito, pois a subconcessão somente é admitida no serviço público "desde que expressamente autorizada pelo poder concedente", devendo ser sempre precedida de concorrência, segundo o artigo 26 da Lei nº 8.987/1995.

As empresas costumam se defender alegando a possibilidade de venda de espaço da programação para publicidade. No entanto, o CBT permite a comercialização de até 25% do tempo na programação das estações de radiodifusão8 (art. 124 da Lei nº 4.117/1962), ou seja, 6 horas por dia, incluindo todos os intervalos comerciais. Essa demarcação também está colocada no Decreto nº 52.795/1963 (art. 28,12, c), mas é flagrantemente descumprida.

A venda de tempo de publicidade acima do limite legal agride todo o processo de outorga e constitui infração à ordem econômica (art. 36 da Lei nº 12.529/2011). Se para obter uma concessão ou permissão é preciso apresentar uma proposta de programação e se essa programação é alterada depois, com a venda de parcelas que, às vezes, chegam a 100% da grade, está claro que há um problema. O entendimento do então Ministério das Comunicações, expresso em uma nota informativa em 2012, é de que o arrendamento não foi objeto de regulamentação e, por isso, não é possível atuar em relação a esses contratos99 Araújo BSR. Limites à concentração de propriedade dos meios de comunicação - poder do Estado e papel do SBDC. RFDFE. 4: 105-137, 2014., o que acaba viabilizando o uso privado de um bem público sem processos públicos e transparentes. Hoje, a prática de arrendamentos é praticada sobretudo por igrejas.

Por fim, e não menos importante, há inúmeros abusos também no conteúdo veiculado sobre os meios de comunicação. Se o art. 221 da Constituição estabelece que a programação das emissoras deve dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, o cotidiano do que recebemos em nossas casas está bastante longe disso. De programas humorísticos a novelas, passando pelos chamados 'programas policialescos', a quantidade de violações de direitos humanos no conteúdo veiculado na TV é assustadora. Em 2015, pesquisa realizada pela Andi - Comunicação e Direitos, em parceria com o Intervozes1010 Intervozes. Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil: como combater as ilegalidades no rádio e na TV. 2015 [acesso em 2018 junho 15]. Disponível em: http://intervozes.org.br/arquivos/interman004cldcnb.pdf.
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, a artigo 19 e o MPF, revelou que, ao longo de 30 dias, em 28 programas policialescos, de 10 estados diferentes, mais de 4.500 violações de direitos haviam sido praticadas no período1111 Varjão S. Violações de direitos na mídia brasileira: ferramenta prática para identificar violações de direitos no campo da comunicação de massa. Brasília, DF: ANDI; 2015. (Guia de monitoramento de violações de direitos; v. 1.). [acesso em 2018 junho 20]. Disponível em: http://www.andi.org.br/publicacao/guia-de-monitoramento-violacoes-de-direitos-na-midia-brasileira-i.
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O estudo organizou as violações em nove tipos: 1. Desrespeito à presunção de inocência; 2. Incitação ao crime e à violência; 3. Incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; 4. Exposição indevida de pessoa(s); 5. Exposição indevida de família(s); 6. Discurso de ódio e Preconceito de raça; Os tipos de violações cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional; 7. Identificação de adolescentes em conflito com a lei; 8. Violação do direito ao silêncio; 9. Tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante.

Entretanto, para analisar a programação veiculada, sempre posteriormente, e decidir se o conteúdo transmitido violou ou não as normas estabelecidas, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações considera apenas duas previsões bastante específicas em nossa legislação. Ambas estão no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 52.795/63): o art. 28, 12, b) não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico; e o art. 122, que considera infração "promover campanha discriminatória de classe, cor, raça ou religião"44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2018 out 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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. Todo o restante do marco regulatório brasileiro sobre o tema (Constituição Federal, Código Civil, Código Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente, além de tratados internacionais ratificados pelo País) não é levado em conta.

Como se nota, muito da reforma das comunicações que precisa ser feita depende de aprimoramentos nos marcos normativos do Brasil. No entanto, caso as poucas regras já existentes fossem efetivamente respeitadas, o cenário de concentração e de exploração ilegal das outorgas poderia ser enfrentado, com ganhos importantes para a diversidade de pluralidade dos meios e, consequência disso, da sociedade.

Ausência do sistema público e de políticas de incentivo à comunicação comunitária

Além de medidas de coibição à concentração da propriedade no mercado privado de comunicações, a existência de sistemas públicos e comunitários de radiodifusão faz parte dos padrões internacionais de garantia de diversidade e pluralidade na mídia. Como mencionado anteriormente, essa complementaridade está prevista enquanto princípio há 30 anos em nossa Constituição Federal. Desde que a radiodifusão chegou aqui, o Brasil conta com emissoras educativas de rádio e televisão em âmbito estadual. entretanto, foi somente a partir de 2008, com a promulgação da Lei nº 11.652, que o embrião de um sistema público de comunicação passou a ser gestado.

A lei instituiu os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública - oferecer mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional e internacional; desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania; fomentar a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação; apoiar processos de inclusão social e socialização da produção de conhecimento garantindo espaços para exibição de produções regionais e independentes, entre outros - e autorizou o Poder Executivo a constituir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

O texto também instituiu a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, visando garantir recursos para a ampliação da penetração desse serviço, e previu a formação da Rede Nacional de Comunicação Pública, em articulação com as emissoras educativas nos estados.

Em seus primeiros oito anos de vida, a EBC enfrentou inúmeros desafios para colocar em prática os objetivos previstos na lei, de obstáculos para a expansão da transmissão de seu sinal, em função do congestionamento do espectro em várias capitais do País, à falta da priorização de recursos no âmbito do Executivo federal. Em 2016, entretanto, o projeto de constituição do sistema público foi abortado por meio da Medida Provisória (MP) 744, uma das primeiras a ser enviadas pelo então novo governo Michel Temer ao Congresso Nacional. Aprovado pelos parlamentares e convertido na Lei nº 13.417/17, o texto excluiu da normativa até então em vigor os dois principais mecanismos de autonomia da empresa de comunicação pública em relação ao governo federal: o Conselho Curador, espaço que contava com maioria de participação da sociedade civil e que tinha poder deliberativo sobre os rumos da empresa, e o mandato para presidente da EBC, que impedia que a gestão direta da empresa ficasse subordinada à vontade do governo federal.

O então presidente da EBC, jornalista Ricardo Melo, foi demitido. Com a mudança no texto da lei, o caráter público da EBC foi significativamente comprometido. Programas na TV Brasil foram extintos, trabalhadores/as foram demitidos em função de suas posições políticas - muitos seguem na empresa, mas perseguidos -, os casos de assédio moral se multiplicaram, e as redações das emissoras de rádio e da televisão pública sofrem constantes episódios de censura interna, visando barrar a divulgação de informações que possam gerar críticas ao governo Temer.

Em parecer emitido sobre a MP 744, na época de sua tramitação no Congresso, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), afirmou:

A estrutura existente na EBC reunia um feixe de órgãos que, com suas competências concertadas, impunham limites ao exercício do personalismo de seu diretor-presidente, de seus órgãos de cúpula e traziam em si, sobretudo através do Conselho Curador, uma requintada forma de controle social que era exercido em nome do cumprimento dos princípios e objetivos, bem assim dos valores constitucionais a que deve atender o serviço público de comunicação1212 Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Nota Técnica nº 07/2016/PFDC, de 7 de outubro de 2016. [acesso em 2018 julho 28]. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/temas-de-atuacao/comunicacao-social/saiba-mais/legislacao-1/nota-tecnica-07-2016-pfdc-mpf.
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Na ocasião, o órgão já alertava que, como consequência da fragilização estrutural produzida, abria-se o espaço para a prática da censura de natureza política, ideológica e artística; e, por isso, considerava a MP inconstitucional. Atualmente, um pedido da PFDC para a entrada de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra as alterações institucionais praticadas na EBC aguarda decisão da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge.

No fim de 2017, o quadro se agravou. Expressão desse cenário, o Conselho de Administração (Consad) da EBC aprovou a retirada do conceito de 'comunicação pública' do mapa estratégico da empresa, documento que orienta seus objetivos e ações. Na versão anterior, constava como horizonte da EBC 'ser referência em Comunicação Pública'. Agora, consta 'ser uma empresa referência em comunicação'.

A Ouvidoria-Geral, único instrumento preservado pela MP de Temer, manifestou nos boletins de 2017 preocupação quanto ao que chamou de 'excessivo governismo nas pautas', em especial no programa comandado pela ex-jornalista do sistema Globo de Rádio, Roseann Kennedy. Bastam poucos minutos do 'Corredores do Poder' para que o telespectador verifique que a apresentadora consegue, por exemplo, defender melhor as reformas da Previdência e trabalhista propostas por Temer do que o próprio ministro da Fazenda.

A EBC também sofreu com a política de cortes imposta pelo governo. Inicialmente previsto em R$ 708.409.651 pela Lei Orçamentária Anual para 2017, seu orçamento teve uma redução de 57,7% em sua execução. Assim, no último ano, a EBC executou um total de R$ 299.657.282, montante bem abaixo da média orçamentária de 2010-2015. O corte no orçamento produziu consequências graves no que diz respeito tanto ao trabalho dos profissionais quanto à qualidade do produto entregue ao espectador/leitor dos veículos que compõem a EBC.

Enquanto o Brasil não conseguiu consolidar um sistema público de comunicação - que, agora, passa por um sistêmico processo de desmonte -, países vizinhos na América do Sul modificaram, na última década, seus marcos regulatórios para fazer justamente o inverso: promover, de maneira estrutural, a comunicação pública e comunitária. Em 2007, no Uruguai, por exemplo, a lei de Serviço de Radiodifusão Comunitária estabeleceu a reserva de, pelo menos, um terço das frequências disponíveis em cada região geográfica para emissoras comunitárias. O mesmo ocorreu em 2012, na Argentina, com a Ley de Medios.

No Brasil, a Lei nº 9.612/1998 regulou o serviço impondo regras bastante restritas de atuação, como limitação a 1 km de alcance, potência de 25 Watts para os transmissores, proibição de atuação em rede e de veiculação de publicidade. Somando o processo burocratizado de obtenção das autorizações, o resultado é que a imensa maioria das rádios comunitárias hoje se encontra em situação de ilegalidade ou de impossibilidade de sobrevivência.

O desafio do acesso à internet

Reformar as comunicações passa também por efetivar mudanças na estrutura das telecomunicações brasileiras e universalizar o acesso a um serviço já considerado essencial pela nossa legislação que é suportado pelas redes: a conexão à internet, hoje imprescindível não apenas para o exercício da liberdade de expressão e para o acesso à informação, bem como para o acesso ao conhecimento, à cultura, ao direito à organização, à participação política e ao desenvolvimento social.

Assim como na radiodifusão, o cenário brasileiro é de grande concentração nas telecomunicações, com as três maiores companhias do setor controlando 94% das conexões em banda larga fixa; 94% da telefonia fixa e 81% da telefonia móvel. Tal concentração está na raiz da exclusão digital de 39% das casas brasileiras que ainda não têm acesso à internet. Os números são da pesquisa TIC Domicílios 2017, lançada este ano pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Quando o recorte regional e de classe é feito, fica claro como o interesse financeiro das operadoras tem deixado milhões de brasileiros e brasileiras desconectados. Nas classes D e E, apenas 30% das residências têm acesso à banda larga fixa. Na região Norte, somente 48%. No Nordeste, 49%. Já no Sudeste, são 69% com conexão. O estudo também mostrou que 28% das pessoas que não acessam a rede em casa não o fazem porque não há disponibilidade de oferta na região onde moram.

Nos últimos anos, o crescimento do acesso à internet se deu essencialmente por meio de conexões móveis, o que significa que grande parte da população está sujeita a planos com pacotes de dados bastante reduzidos e que limitam de maneira significativa sua navegação na rede - e, consequentemente, o exercício dos direitos acima mencionados. Apesar de, desde 2014, o Marco Civil da Internet afirmar o acesso à rede como essencial para o exercício da cidadania - o que deveria resultar em políticas públicas para sua universalização -, o poder público caminha no sentido contrário.

Programas como o Plano Nacional de Banda Larga, de 2010, que tinha o objetivo de fortalecer a Telebras enquanto empresa pública de telecomunicações, tornando-a capaz de garantir a oferta do serviço de conexão na ponta, em parceria com pequenos provedores locais, foram concluídos sem que suas metas fossem atingidas. Em 2017, o governo federal anunciou a privatização da exploração da maior parte da banda de seu primeiro satélite geoestacionário, desenvolvido justamente para promover a inclusão digital em áreas de difícil acesso à infraestrutura de cabos. O leilão do satélite não teve interessados, e coube à Telebras operá-lo. Um contrato, que chegou a ser judicializado, foi firmado com a empresa norte-americana Viasat, mas a Justiça brasileira autorizou recentemente sua manutenção, para que os prejuízos aos cofres públicos não sejam maiores. O satélite custou R$ 2,7 bilhões e está há mais de um ano em órbita, sem operação. Não há previsão de quando as novas conexões à internet estarão disponíveis.

Também na contramão da universalização do acesso à rede, o governo federal tem tentado aprovar no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 79/2016, que altera a Lei Geral de Telecomunicações e entrega mais de R$ 100 bilhões em infraestrutura de rede pública, hoje exploradas pelas operadoras de telefonia fixa mediante concessão, para as empresas privadas. O PLC transforma as concessões em autorizações, retirando das empresas as obrigações de universalidade, modicidade tarifária e continuidade na oferta do serviço. Como 40% das conexões de banda larga fixa hoje são feitas por meio da mesma rede que leva o serviço de telefonia fixa às residências, o impacto da medida pode ser enorme.

Se a lógica privatista não prevalecesse, o Estado brasileiro poderia usar os mais de R$ 15 bilhões já recolhidos pelo Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) - que tem sido usados nos últimos governos para fazer superavit primário - e os R$ 10 bilhões em multas devidas pelas empresas de telefonia por descumprimento de obrigações relacionadas com a prestação dos serviços para garantir que todo cidadão tivesse acesso à internet de maneira plena e inclusiva. Infelizmente, o que tem ocorrido, diante do aumento mesmo precário das conexões móveis, é o crescimento da desigualdade informacional e de direitos entre os conectados e os não conectados - ainda hoje, segundo o Cetic.br, 33% da população.

Novos monopólios digitais

Dentro do universo dos conectados, as adversidades não são menores. Se a chegada da internet trouxe com ela uma promessa, parcialmente cumprida, de ampliar fontes de informação e de, justamente, permitir o exercício da liberdade de expressão nesse novo ambiente de debate público, nos últimos anos, o que se tem constatado é um quadro em que muitos falam para muito poucos e muito poucos falam para milhões, também no mundo digital. Segundo dados da empresa BigData Corp, há 10 milhões de sites ativos no Brasil. Destes, cerca de 5,5 milhões são blogs. Porém, de acordo com o relatório 'Internet Health Report v.0.1'1313 Mozilla. Internet Health Report v.0.1 2017. [acesso em 2018 maio 12]. Disponível em: https://d20x8vt12bnfa2.cloudfront.net/InternetHealthReport_v01.pdf.
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, 55% dos brasileiros não conseguem diferenciar o Facebook da internet. Perguntados se concordavam com a afirmação 'O Facebook é a internet', mais da metade dos entrevistados do País respondeu que sim. Foi uma das maiores taxas do mundo, atrás apenas da Nigéria, Indonésia e Índia. Nos Estados Unidos, somente 5% dos entrevistados responderam que sim. Hoje, além de controlar a maior rede social do mundo, o Facebook também é dono do WhatsApp e do Instagram, e é dono de 3 dos 15 sites mais acessados no planeta.

Outro gigante global da internet, o Google, também é monopolista no mercado de buscas no País, ferramenta que se tornou uma das principais portas de entrada para acessar informações na rede. Atualmente, de acordo com a pesquisa Concentração e Diversidade na Camada de Aplicação e Conteúdos da Internet1414 Intervozes. Concentração e Diversidade na Camada de Aplicação e Conteúdos da Internet. 2018 [acesso em 2018 julho 1]. Disponível em: http://monopoliosdigitais.com.br.
http://monopoliosdigitais.com.br...
, o Google é responsável por 95% do tráfego relativo a buscas no Brasil. A pesquisa lembra a decisão da União Europeia que multou a empresa em € 2,4 bilhões (equivalente a mais de R$ 10 bilhões) por favorecer, por meio de seu motor de busca, serviços e conteúdos do próprio Google, criando problemas de concorrência e gerando um controle deletério para a diversidade on-line. Além do sistema operacional Android, para celulares, o Google também é dono do YouTube, entre várias outras empresas de tecnologia digital.

Ou seja, os novos gatekeepers da comunicação são globais, e qualquer competição envolve uma cadeia de serviços internacional. São poucas as corporações de mídia tradicionais que conseguem espaço nessa disputa; e, não à toa, o Grupo Globo está entre elas, porque teve capital para testar desenvolver novas estratégias de atuação nesse cenário de convergência. Em 2012, a família Marinho criou um serviço sob demanda, o Globo.tv+. Acessível pelo computador e por dispositivos como smartphones e tablets, ele disponibilizava os conteúdos do grupo na íntegra, inclusive novelas e outras produções de sucesso que já haviam ido ao ar. Em 2014, os canais Globosat passaram a ser disponibilizados em uma plataforma por demanda, a Globosat Play, voltada para os assinantes da TV paga. O serviço foi apontado como uma resposta ao crescimento de plataformas de vídeo sob demanda, com destaque para Netflix.

Em outubro de 2015, executivos do grupo apresentaram o GloboPlay, nova plataforma de distribuição, a qual se conformou como principal espaço para distribuição de conteúdo do grupo na internet, possibilitando o acesso tanto à programação ao vivo e a trechos de programas, gratuitamente, quanto a programas sob demanda. Hoje, por meio do GloboPlay, é possível visualizar inclusive conteúdos que ainda não foram ao ar na TV aberta. A plataforma já conta com mais de 20 milhões de assinantes e anuncia mudanças para concorrer com o Netflix, que domina o mercado brasileiro neste campo. Ainda no campo da gestão do conteúdo, o Grupo Globo tem apostado em referências cruzadas entre seus veículos, exibindo, por exemplo, repórteres e notícias do portal G1 na TV aberta, e produzido webseries específicas para a internet, além de outros conteúdos de entretenimento, os quais estão reunidos no portal GShow, que pode ser acessado como aplicativo para celular.

Para além do risco de reprodução da concentração dos meios tradicionais no ambiente digital, outras dinâmicas e novos fenômenos do mundo on-line podem impactar seriamente o acesso à informação e liberdade de expressão, como no caso do controle editorial de conteúdos por algoritmos e mecanismos de inteligência artificial; da propagação das chamadas notícias falsas; do discurso de ódio que visa silenciar grupos minoritários e historicamente marginalizados; da mediação do debate público pelas poucas redes sociais e sua potencial manipulação por robôs e formação de bolhas ideológicas. Isso sem falar nas preocupações trazidas pela coleta e tratamento massivo e indiscriminado de dados pessoais nas redes, que seguem em curso diante da ausência de uma Lei Geral de Proteção de Dados em vigor no Brasil.

Tamanho poder concentrado nas grandes plataformas tem colocado em pauta o debate sobre a necessidade e sobre o modelo de regulação das aplicações que operam na chamada camada de conteúdo da internet. Para não incorrermos no risco de comprometer o caráter ainda aberto e inovador da internet, tal regulação não pode ser excessiva. Uma total desregulação nesse setor, entretanto, pode justamente comprometer, em definitivo, talvez em curtíssimo prazo, o que se entende por diversidade e pluralidade no mundo on-line.

Reformar as comunicações para garantir o direito à comunicação

Os desafios, como visto, são enormes e crescentes. Contudo é imperativo, para qualquer país que pretenda se consolidar enquanto uma democracia, garantir um sistema de radiodifusão plural e uma internet livre e aberta para todos. Do contrário, novas ameaças de ruptura democrática, tendo o setor midiático comercial como agente, como visto em 2016, poderão sempre se reproduzir. Tão imperativo quanto é reconhecer, como princípio desse processo de reforma, a comunicação como um direito fundamental.

Objeto de reflexões pelo menos desde os anos 19601515 Rodrigues DM. O Direito Humano à Comunicação: igualdade e liberdade no espaço público mediado por tecnologias. 2010. 157 f. [dissertação] - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo., esse novo direito - que vai além da liberdade de expressão e do acesso à informação, já garantidos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 - passou a ser afirmado diante da desigualdade dos fluxos comunicacionais entre os países. Em torno da construção do conceito de direito à comunicação, estava a percepção de que outros direitos, como a liberdade de expressão, não respondiam totalmente aos desafios colocados por uma sociedade em vias de midiatização, na qual a possibilidade de circular informação passa, em boa medida, pelo acesso à mídia. Indo além de uma abordagem individual e pautada pela ideia da liberdade negativa, a perspectiva do direito à comunicação afirma justamente que o Estado deve eliminar as restrições econômicas e sociais impostas a diversos grupos para que possam se comunicar por meio de veículos massivos.

Com a afirmação desse direito, pretende-se estimular um ciclo positivo de interação e diálogo, de modo que todas as pessoas tenham condições para se expressar livremente, ser produtoras de conteúdo e fazer circular essas manifestações, sejam elas opiniões, informações ou produções culturais1616 Intervozes. Contribuições para a construção de indicadores do direito à comunicação. São Paulo : Intervozes; 2010..

Em 1980, o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) 'Um Mundo, Muitas Vozes', conhecido como 'Relatório MacBride', tornou-se um marco desse processo ao destacar a importância da mídia e a necessidade de os países adotarem políticas públicas para garantir igualdade nos meios de comunicação. No documento, o organismo aponta que a concentração da propriedade da imprensa pelos monopólios de rádio e TV, a censura e o controle governamental infringem a liberdade de informação1717 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Un solo mundo, voces múltiplas. Comunicación e información em nuestro tiempo. Fondo de Cultura Económica, México: 1980.. Ao contrário, a Unesco afirma que a todos deveria ser assegurado o direito de receber e difundir informação e opinião, formulação que levou adiante o desenvolvimento conceitual da comunicação como um direito1818 Brasil. Presidência da República. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013 [internet]. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Diário Oficial da União. 6 Ago 2013. [acesso em 2018 set 25]. Disponível em: http://www.imprensanacional.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/30042825/do1-2013-08-06-lei-n-12-852-de-5-de-agosto-de-2013-30042815.
http://www.imprensanacional.gov.br/mater...
. Com vistas à concretização dele, defende o desenvolvimento políticas de comunicação, inclusive de políticas que objetivem dividir de forma equitativa o espectro eletromagnético, de modo que os meios sejam espaços mais plurais e diversos1717 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Un solo mundo, voces múltiplas. Comunicación e información em nuestro tiempo. Fondo de Cultura Económica, México: 1980..

No Brasil, a Constituição Federal dedica um capítulo ao tema da comunicação, embora não o reconheça como direito. Em 2013, pela primeira vez uma lei brasileira, o Estatuto da Juventude1818 Brasil. Presidência da República. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013 [internet]. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Diário Oficial da União. 6 Ago 2013. [acesso em 2018 set 25]. Disponível em: http://www.imprensanacional.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/30042825/do1-2013-08-06-lei-n-12-852-de-5-de-agosto-de-2013-30042815.
http://www.imprensanacional.gov.br/mater...
, citou de explicitamente o direito à comunicação. Ele estabelece que

o jovem tem direito à comunicação e à livre expressão, à produção de conteúdo, individual e colaborativo e ao acesso às tecnologias de informação e comunicação.

Como visto, ainda estamos longe de reconhecer e assegurar tal direito, e de colocá-lo no centro das decisões regulatórias e do desenvolvimento das políticas públicas para o setor. Mudar esse quadro requer uma transformação estrutural no âmbito de comunicações. Todavia, uma agenda de transição, que garanta o direito à comunicação no tempo presente, é, sim, possível. Basta vontade política, inversão de prioridades e mecanismos de participação popular na condução dos processos. Trata-se de uma agenda da qual nossa democracia não pode mais prescindir.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2018
  • Aceito
    10 Set 2018
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