Meu Deus, lá vem ele de novo! O cuidado à saúde aos “hiperutilizadores” na Atenção Básica

¡Ay, Dios mío, él otra vez! El cuidado de la salud a los “hiperutilizadores” en la Atención Básica

Fernando Tureck Arthur Chioro Rosemarie Andreazza Sobre os autores

Resumos

Este artigo visa analisar aspectos no cuidado aos “hiperutilizadores” na Atenção Básica por meio da percepção dos profissionais e dos usuários. Foi realizada uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, do tipo estudo de caso, em que “hiperutilizadores” e profissionais foram entrevistados. A maneira como os profissionais definem quem é um usuário “hiperutilizador” é mais complexa do que o número total de consultas realizadas, passando pela identificação das necessidades em saúde que motivam a busca por cuidados. Os usuários com necessidades que extrapolam o alcance do modelo biomédico muitas vezes não têm as suas necessidades corretamente identificadas ou consideradas legítimas, e são considerados “hiperutilizadores” independentemente do número de consultas. O estudo serviu como um analisador da Atenção Básica à Saúde (ABS). Mantém-se um modelo ainda centrado na racionalidade biomédica, com pouca abertura para a “vida como ela é” e para o conhecimento e o “agir-leigo”.

Palavras-chave
Atenção básica à saúde; Necessidades e demanda de serviços de saúde; Uso excessivo de serviço de saúde; Cuidado centrado no paciente; Modelos de atenção primária


El objetivo de este artículo es analizar aspectos en el cuidado a los “hiperutilizadores” en la atención básica, a partir de la percepción de los profesionales y de los usuarios. Se realizó una investigación cualitativa, de carácter exploratorio, del tipo estudio de caso, en la que fueron entrevistados “hiperutilizadores” y profesionales. La manera en que los profesionales definen quién es un usuario “hiperutilizador” es más compleja que el número total de consultas realizadas y pasa por la identificación de las necesidades de salud que motivan la búsqueda de cuidados. Los usuarios con necesidades que extrapolan el alcance del modelo biomédico, muchas veces no tienen sus necesidades correctamente identificadas o consideradas legítimas y son considerados “hiperutilizadores”, independientemente del número de consultas. El estudio sirvió como un analizador de la ABS. Se mantiene un modelo que todavía está centrado en la racionalidad biomédica, con poca apertura para la “vida tal como es” y para el conocimiento y el “actuar-lego”.

Palabras clave
Atención Básica de la Salud; Necesidades y demanda de servicios de salud; Uso excesivo de servicio de salud; Cuidado centrado en el paciente; Modelos de Atención Primaria


Introdução

Usuários hiperutilizadores na Atenção Básica à Saúde (ABS) são conhecidos e representam um grande desafio para as equipes. Embora constituam uma pequena parcela no universo de pessoas atendidas na ABS, podem consumir até 40% das consultas e dos serviços ofertados pelas Unidades de Saúde11 Savageau JA, McLoughlin M, Ursan A, Bai Y, Collins M, Cashman SB. Characteristics of frequent attenders at a community health center. J Am Board Fam Med. 2006; 19(3):265-275.. Além disso, 36% são classificados pelos profissionais como pacientes difíceis22 Bellón JA, Fernández-Asensio ME. Emotional profile of physicians who interview frequent attenders. Patient Educ Couns. 2002; 48(1):33-41., o que pode ocasionar dificuldades para tratamento ou cuidado e produzir conflitos, além de representar uma sobrecarga de trabalho e emocional tanto para a equipe como para os usuários.

Não há na literatura consenso para a definição de usuário hiperutilizador na ABS. Vários estudos adotam critérios quantitativos, como número absoluto de consultas médicas em um determinado período11 Savageau JA, McLoughlin M, Ursan A, Bai Y, Collins M, Cashman SB. Characteristics of frequent attenders at a community health center. J Am Board Fam Med. 2006; 19(3):265-275.,33 Fernandes CLC. Análise da demanda e forma de utilização do ambulatório multiprofissional de um serviço de atenção primária à saúde de Porto Alegre, Brasil [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2013.

4 Carvalho IPA, Carvalho CGX, Lopes JMC. Prevalência de hiperutilizadores de serviços de saúde com histórico positivo para depressão em atenção primária à Saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015; 10(34):1-7.

5 Kang SC, Lin CC, Tsai CC, Lu YH, Huang CF, Chen YC. Characteristics of frequent attenders compared with non-frequent attenders in primary care: study of remote communities in taiwan. Healthcare (Basel). 2020; 8(2):96.
-66 Neal RD, Heywood PL, Morley S, Clayden AD, Dowell AC. Frequency of patients’ consulting in general practice and workload generated by frequent attenders: comparisons between practices. Br J Gen Pract. 1998; 48(426):895-898., frequência de consultas médicas em percentil77 Howe A, Parry G, Pickvance D, Hockley B. Defining frequent attendance: evidence for routine age and sex correction in studies from primary care settings. Br J Gen Pract. 2002; 52(480):561-562.

8 Foster A, Jordan K, Croft P. Is frequent attendance in primary care disease-specific? Fam Pract. 2006; 23(4):444-452.

9 Luciano JV, Fernández A, Pinto-Meza A, Luján L, Bellón JA, García-Campayo J, et al. Frequent attendance in primary care: comparison and implications of different definitions. Br J Gen Pract. 2010; 60(571):49-55.

10 Ferrari S, Galeazzi GM, Mackinnon A, Rigatelli M. Frequent attenders in primary care: impact of medical, psychiatric and psychosomatic diagnoses. Psychother Psychosom. 2008; 77(5):306-314.

11 Pymont C, Butterworth P. Longitudinal cohort study describing persistent frequent attenders in Australian primary healthcare. BMJ Open. 2015; 5(10):e008975. Doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2015-008975.
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-008...

12 Reho TTM, Atkins SA, Talola N, Sumanen MPT, Viljamaa M, Uitti J. High cost or frequent attender - both spend resources, but are they linked to work disability? A cohort study from occupational health primary care in Finland. BMC Health Serv Res. 2020; 20(1):456.

13 Jørgensen JT, Andersen JS, Tjønneland A, Andersen ZJ. Determinants of frequent attendance in Danish general practice: a cohort-based cross-sectional study. BMC Fam Pract. 2016; 17(9):1-10. Doi: https://doi.org/10.1186/s12875-016-0412-4.
https://doi.org/10.1186/s12875-016-0412-...
-1414 Bellón JA, Rodríguez-Bayón A, Dios Luna J, Torres-González F. Successful GP intervention with frequent attenders in primary care: randomised controlled trial. Br J Gen Pract. 2008; 58(550):324-330. ou variações no número de consultas médicas em torno da média do local1414 Bellón JA, Rodríguez-Bayón A, Dios Luna J, Torres-González F. Successful GP intervention with frequent attenders in primary care: randomised controlled trial. Br J Gen Pract. 2008; 58(550):324-330.,1515 Brodeur M, Margo-Dermer E, Chouinard M, Hudon C. Experience of being a frequent user of primary care and emergency department services: a qualitative systematic review and thematic synthesis. BMJ Open. 2020; 10(9):e033351.. Outros utilizam critérios qualitativos, como a percepção pela equipe de que o usuário frequenta a unidade com frequência maior que a esperada pela situação clínica, de forma excessiva ou desnecessária, independentemente do número de consultas1515 Brodeur M, Margo-Dermer E, Chouinard M, Hudon C. Experience of being a frequent user of primary care and emergency department services: a qualitative systematic review and thematic synthesis. BMJ Open. 2020; 10(9):e033351.

16 Kivelä K, Elo S, Kääriäinen M. Frequent attenders in primary health care: a concept analysis. Int J Nurs Stud. 2018; 86:115-124. Doi: https://doi.org/10.1016/j.ijnurstu.2018.06.003.
https://doi.org/10.1016/j.ijnurstu.2018....

17 Ramos V, Carrapiço E. Pessoas que consultam frequentemente. In: Gusso G, Lopes JMC. Tratado de medicina da família e comunidade: princípios, formação e práticas. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 141-151.

18 Neal RD, Heywood PL, Morley S. ‘I always seem to be there’--a qualitative study of frequent attenders. Br J Gen Pract. 2000; 50(458):716-723.
-1919 Hodgson P, Smith P, Brown T, Dowrick C. Stories from frequent attenders: a qualitative study in primary care. Ann Fam Med. 2005; 3(4):318-323..

Várias investigações demonstraram que não há, entre os hiperutilizadores, um predomínio em relação ao gênero, porém observa-se um aumento do número de consultas relacionado a envelhecimento e comorbidades11 Savageau JA, McLoughlin M, Ursan A, Bai Y, Collins M, Cashman SB. Characteristics of frequent attenders at a community health center. J Am Board Fam Med. 2006; 19(3):265-275.,88 Foster A, Jordan K, Croft P. Is frequent attendance in primary care disease-specific? Fam Pract. 2006; 23(4):444-452.,2020 Knox SA, Britt H. The contribution of demographic and morbidity factors to self-reported visit frequency of patients: a cross-sectional study of general practice patients in Australia. BMC Fam Pract. 2004; 5(1):17.. Não há uma patologia clínica específica relacionada ao padrão de maior utilização da ABS, apesar da frequência elevada de pacientes com doenças crônicas2121 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.,2222 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012., transtornos do humor e ansiedade99 Luciano JV, Fernández A, Pinto-Meza A, Luján L, Bellón JA, García-Campayo J, et al. Frequent attendance in primary care: comparison and implications of different definitions. Br J Gen Pract. 2010; 60(571):49-55.,2020 Knox SA, Britt H. The contribution of demographic and morbidity factors to self-reported visit frequency of patients: a cross-sectional study of general practice patients in Australia. BMC Fam Pract. 2004; 5(1):17.. Há um predomínio de hiperutilizadores em classes econômicas menos favorecidas11 Savageau JA, McLoughlin M, Ursan A, Bai Y, Collins M, Cashman SB. Characteristics of frequent attenders at a community health center. J Am Board Fam Med. 2006; 19(3):265-275., atribuído à maior vulnerabilidade social2020 Knox SA, Britt H. The contribution of demographic and morbidity factors to self-reported visit frequency of patients: a cross-sectional study of general practice patients in Australia. BMC Fam Pract. 2004; 5(1):17.,2323 Mautner DB, Pang H, Brenner JC, Shea JA, Gross KS, Frasso R, et al. Generating hypotheses about care needs of high utilizers: lessons from patient interviews. Popul Health Manag. 2013; 16 Suppl 1:26-33..

Independentemente do critério usado para definir quem é hiperutilizador, é preciso ponderar que na ABS a garantia de continuidade e a longitudinalidade são características desejadas do bom cuidado, o que necessariamente implica visitas mais frequentes ao serviço2424 Cecilio LCO, Reis AAC. Quatro apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica. Cad Saude Publica. 2018; 34(8):e00056917..

No Brasil, há um reconhecimento do valor de uso da ABS por oferecer serviços territorializados, próximo das residências das pessoas, e uma quantidade importante de ações, desde dispensação de medicamentos até consultas médicas, além do acesso a outros serviços de saúde2525 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza LM, Anfrade MGG, Santiago SM, et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; 2014..

Mendes, ao discutir a demanda da Atenção Primária, aponta parte do atendimento como concentrada por usuários hiperutilizadores. Para o autor, o “entendimento do fenômeno das pessoas hiperutilizadoras é importante do ponto de vista do sistema de Atenção à Saúde, seja numa perspectiva de sua economicidade, seja na perspectiva de sua qualidade”2626 Mendes EV. A construção social da Atenção Primária à Saúde. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, CONASS; 2015. (p. 64).

Este artigo visa produzir uma análise dos aspectos envolvidos no cuidado aos hiperutilizadores na ABS, com base na percepção tanto dos profissionais da equipe quanto dos usuários. Entender como suas necessidades são (ou não) compreendidas e atendidas pelas equipes poderá oferecer subsídios para o desenvolvimento de estratégias e indicar arranjos singulares de gestão de cuidado para aqueles que “usam demais os serviços”.

Metodologia

Realizou-se uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório que fez uso de múltiplas técnicas para a produção dos dados. A investigação foi conduzida em duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) de um município da região de saúde do Planalto Norte de Santa Catarina, com aproximadamente 55 mil habitantes.

A primeira UBS foi escolhida pela diversidade no perfil de seus usuários, além da estabilidade de sua equipe profissional. Posteriormente, solicitou-se à coordenação da ABS do município a indicação de uma segunda UBS que fosse reconhecida pela qualidade no atendimento prestado. As duas UBS estudadas são geridas diretamente pelo município e contam com duas equipes de saúde da família.

O principal instrumento utilizado para a produção dos dados foi a entrevista semiestruturada. Foram entrevistadas 14 pessoas, sendo seis usuários considerados “hiperutilizadores”, dois familiares desses usuários e seis profissionais. De acordo com Poupart2727 Poupart J. A entrevista do tipo qualitativo: considerações epistemológicas, teóricas e metodológicas. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires AP. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2008. p. 215-253., a utilização desse instrumento nas pesquisas qualitativas permite explorar em profundidade a perspectiva dos atores sociais, compreender e conhecer internamente os dilemas e questões enfrentadas por eles.

Inicialmente, foi feita uma reunião com as equipes multiprofissionais para apresentação da pesquisa. Nesse momento, foi solicitado que os participantes indicassem usuários considerados hiperutilizadores.

As entrevistas com os usuários tiveram como objetivo coletar o relato de vida sobre o uso dos serviços de saúde, além de desenhar um breve retrato social dessas pessoas. Foram realizadas no domicílio dos usuários, antes da eclosão da pandemia de Covid-19. Para garantir o anonimato, cada um dos entrevistados foi identificado pela letra U seguida pelo número correspondente à ordem em que foi entrevistado. No Quadro 1 descrevem-se as principais características dos hiperutilizadores entrevistados.

Quadro 1
Perfil dos Usuários Entrevistados

Para Houle2828 Houle G. A sociologia como ciência da vida: a abordagem biográfica. In: Poupart J, Deslauries JP, Groulx AL, Mayer R, Pires A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Editora Vozes; 2008. p. 317-336., os relatos que compõem as histórias de vida, por mais individuais que sejam, dão acesso a uma prática que também é social e pode ser considerada como experiência da vida em sociedade. Ao escutar a experiência do uso dos serviços da ABS pelos hiperutilizadores, foi possível nos aproximarmos das suas necessidades de saúde, procurando verificar as razões e/ou os motivos que os levam a frequentar intensamente os serviços de saúde, além de demonstrar a maneira como percebem o cuidado que a equipe lhes dispensa.

Encerrada a etapa de entrevistas com os usuários e familiares, foram realizadas seis entrevistas com profissionais das unidades estudadas, selecionados por uma amostra de conveniência. Elas aconteceram nas UBS, durante o horário de expediente dos profissionais, com todos os cuidados sanitários recomendados, pois ocorreram já durante a pandemia de Covid-19. Algumas características dos profissionais entrevistados, identificados com a letra P, estão dispostas no Quadro 2.

Quadro 2
Perfil dos profissionais entrevistados

Todas as entrevistas, gravadas em meio digital, foram transcritas; e após a leitura cuidadosa do material, realizou-se uma primeira aproximação analítica em que foram elaborados quatro “diálogos possíveis”. O objetivo dos “diálogos possíveis” foi buscar o que há de comum, de consenso ou dissenso entre as falas dos profissionais e usuários em relação a um mesmo tema (Quadro 3).

Quadro 3
Diálogos possíveis

Os “diálogos possíveis” foram apresentados para as equipes das unidades em dois seminários compartilhados, um em cada unidade estudada, para guiar a discussão dos grupos. Cada um deles contou com a participação dos profissionais entrevistados, além de outros profissionais que atuam nas equipes. Essa técnica de restituição e construção de novos achados e de reflexão compartilhada entre todos os envolvidos no “pesquisar” tem como base as discussões teóricas de Lourau2929 Lourau R. A Ana’lise institucional. Petro’polis: Vozes; 1975. e Cecilio2525 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza LM, Anfrade MGG, Santiago SM, et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; 2014., e busca tornar a análise dos achados uma produção compartilhada entre os pesquisados e pesquisadores.

Nesses encontros, os participantes foram estimulados a refletir e opinar sobre os “diálogos possíveis” apresentados e, desse modo, os profissionais puderam refletir sobre sua prática profissional na produção do cuidado em saúde aos hiperutilizadores. Os seminários compartilhados estão identificados como SC1 e SC2, sendo gravados em meio eletrônico e posteriormente transcritos, resultando em um vasto material utilizado na análise dos achados das entrevistas.

Toda a análise do material empírico considerou as próprias vivências dos pesquisadores como profissionais de saúde, gestores, professores-pesquisadores3030 Cecilio LCO. A questão do duplo/tríplice estatuto nos estudos sobre gestão e organizações de sau’de no Sistema U’nico de Sau’de no Brasil. Forum Sociologico. 2014; 24:113-120.; quanto ao cuidado epistemológico se buscou analisar a implicação dos investigadores durante o processo de análise do material empírico. Acredita-se ainda que a abordagem do objeto de investigação com base em três pontos de observação ajude nas escolhas e nos achados aqui apresentados.

O estudo foi conduzido em conformidade com a Resolução n. 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as pesquisas em seres humanos, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com o Parecer n. 3.689.071/2019. Todos os participantes foram voluntários e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e discussão

Quem define os hiperutilizadores? Como são reconhecidas (ou não) as necessidades em saúde dos usuários pelos profissionais de saúde?

Fica muito claro, desde o início das entrevistas, que são distintas as racionalidades que comandam a ação dos profissionais e dos usuários sobre a frequência de uso e a real necessidade com que procuram atendimento. Enquanto os profissionais acreditam que a busca de atendimentos é excessiva e desnecessária, como pode ser visto pela frase “todo dia tem aquela figurinha carimbada” (P4), os usuários afirmam que buscam atendimento em quantidade menor que a média dos demais usuários e, ainda assim, apenas quando realmente necessário: “Se eu vou consultar, é só quando é necessário. Mas, assim, por coisas insignificantes, eu não iria em uma consulta [...] Se eu fui é porque eu realmente precisava” (U6).

Os profissionais entrevistados acreditam que essa percepção dos hiperutilizadores poderia ser explicada pela forma naturalizada com que a utilização rotineira da unidade se dá. Ou, ainda, decorrente de motivos que não dependem do usuário: “Eles percebem que não é uma demanda exatamente deles [...] então, eles estão fazendo coisas que é natural fazer, ou é acompanhamento, ou é renovação de receita que eles teriam que fazer de qualquer jeito [...]” (P4).

As equipes foram questionadas sobre se, ao definirem uma pessoa como hiperutilizadora, estavam fazendo referência à frequência com que ela realizava consultas médicas ou se consideravam a frequência com que buscava a UBS, independentemente do motivo. Os profissionais não distinguem essas duas possíveis motivações, e afirmam que as pessoas buscam atendimento “Não só com médico, também com outros profissionais que têm na UBS” (P3).

Os profissionais não consideram hiperutilizadores usuários com quadros clínicos graves ou descompensados, que necessitam de consultas frequentes. O mesmo não se dá em relação às pessoas que apresentam outras situações, não biomédicas, como causa de busca por atendimento:

[...] a gente sabe que ele está hiperutilizando agora porque está com o diabetes descompensado. Até a gente manda retornar, muda a medicação, aumenta a dosagem, manda retornar em uma semana [...] Melhorou, daí volta novamente à rotina de seis em seis meses e pronto [...] Mas existem os hiperutilizadores que acham que estão doentes [...], que você já procurou tudo, já fez todos os exames e não aparece nada.

(P3)

Ao considerar que os hiperutilizadores buscam atendimento de forma desnecessária e que esse grupo de usuários é composto pelos pacientes menos graves, os profissionais indicam as necessidades de saúde que fogem dos parâmetros de gravidade instituídos pelo modelo biomédico, em que prevalece a enfermidade em detrimento da dimensão subjetiva e social de andar a vida, e não são percebidas como importantes ou legítimas.

Ao analisar o Quadro 1 não poderíamos pensar que essas e outras pessoas vão aos serviços com outras necessidades que não as biomédicas, mas que são igualmente legítimas ou graves? Podem ir à UBS porque têm vínculo, porque moram mais próximo (o mais distante mora a 1.500 metros da UBS), porque se sentem acolhidos, porque são responsáveis pelos cuidados de seus familiares ou porque estão em situação de vulnerabilidade e não sabem a quem recorrer.

Apesar das UBS operarem no modelo assistencial da Estratégia Saúde da Família (ESF), com o cuidado (pelo menos em tese) centrado na pessoa, o modelo biomédico prevalece definindo o que seria importante e grave, além de legitimar as necessidades de saúde. Parece que os profissionais olham para um conjunto de carências individuais mais ligadas à clínica médica e não a familiares ou mesmo às necessidades sociais dos usuários

A taxonomia das carências em saúde proposta por Cecilio3131 Cecilio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção. In: Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2009. p. 117-130. ajuda nessa compreensão. Os relatos de vida dos seis usuários revelaram necessidades decorrentes das condições sociais de existência; outras, ligadas ao uso de tecnologias de saúde, mas também à produção de vínculo, que embora reconhecida não é essencialmente valorizada pelas equipes. Resta a necessidade de autonomia no modo de andar a vida. Se a equipe reconhecesse essa última necessidade, poderia interferir na frequência de uso ou na procura dos serviços. O juízo de valor que os profissionais fazem desses usuários indica que consideram, simplesmente, que usam mais do que precisam, que fogem do que seria o comportamento desejado dos usuários pelas normas e regras regulatórias2525 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza LM, Anfrade MGG, Santiago SM, et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; 2014..

Que motivos levam à busca por atendimento?

A maioria dos usuários entrevistados em nossa pesquisa apresentava condições crônicas orgânicas (doenças cardíacas, gástricas e neurológicas) e psiquiátricas (esquizofrenia, transtorno de ansiedade e humor), o que corrobora estudos anteriores que demonstraram uma incidência de pacientes hiperutilizadores com doenças crônicas próxima de 90%11 Savageau JA, McLoughlin M, Ursan A, Bai Y, Collins M, Cashman SB. Characteristics of frequent attenders at a community health center. J Am Board Fam Med. 2006; 19(3):265-275.,1414 Bellón JA, Rodríguez-Bayón A, Dios Luna J, Torres-González F. Successful GP intervention with frequent attenders in primary care: randomised controlled trial. Br J Gen Pract. 2008; 58(550):324-330.. Esses resultados podem refletir mais o perfil de doente que realiza acompanhamento longitudinal na Atenção Básica do que algo relacionado ao uso frequente.

Todos os usuários entrevistados relataram envolvimento em cuidados aos familiares, para acompanhá-los em consultas ou exames, na realização de agendamentos, em renovações de receitas, laudos ou encaminhamentos: “Eu não procuro para mim, eu procuro mais para os meus filhos” (U5). Essa situação familiar não é considerada ou é minimizada pelos profissionais ao elencarem os motivos de busca por atendimento: “Vem por ele [usuário], até esgotar o dele, depois ele passa o resto da lista” (SC2).

A dimensão familiar do cuidado, que segundo Cecilio3232 Cecilio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832011000200021.
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ganha maior importância dependendo da fase da vida e de situações de maior vulnerabilidade, não é percebida quando o indivíduo é responsável por oferecer cuidado aos seus familiares. Porém, os profissionais reconhecem a importância dessa dimensão quando precisam elaborar estratégias diferenciadas para oferecer cuidado aos hiperutilizadores.

Apesar de os usuários relatarem que um dos seus principais motivos de busca por atendimento são questões relacionadas às trocas e renovações de receitas – “A receita é sempre uma vez por mês que tem de ir. Isso aí é normal, todo mês tem de ir lá” (U4) –, essa demanda não é percebida no relato dos profissionais. Modificações implantadas ao longo dos últimos meses na ABS do município, a pedido dos profissionais, resultaram na necessidade de maior número de consultas médicas para a obtenção e a renovação de receitas: “as agentes comunitárias estavam levando e buscando receitas de paciente [...], hoje as receitas são presenciais” (P4).

Ao serem apresentados a esses achados da pesquisa, os profissionais reconhecem a existência de entraves administrativos, “a pessoa tem que procurar mais vezes por conta dos fatores burocráticos mesmo” (SC1), porém, também responsabilizam os usuários pela maior necessidade de atendimento para obtenção de receitas. Entre as principais “culpas” dos usuários estão a perda e o extravio das receitas, a automedicação e o empréstimo de medicamentos aos familiares: “[...] eles falam que perderam [a receita], que não sabem onde colocaram, você acaba tendo que renovar [...]” (SC1). Ou ainda: “Eles acabam às vezes até emprestando [...] Medicam outras pessoas da família [...] e acaba faltando para eles” (SC1).

Ao reafirmarem que o usuário deve ir à unidade e que seu padrão de utilização está dentro do esperado para o seu quadro clínico, os médicos acabam, sem perceber, produzindo ou justificando a busca por atendimento pelos hiperutilizadores1414 Bellón JA, Rodríguez-Bayón A, Dios Luna J, Torres-González F. Successful GP intervention with frequent attenders in primary care: randomised controlled trial. Br J Gen Pract. 2008; 58(550):324-330.,3333 Santalahti AK, Vahlberg TJ, Luutonen SH, Rautava PT. Effect of administrative information on visit rate of frequent attenders in primary health care: ten-year follow-up study. BMC Fam Pract. 2018; 19(1):142.. Os usuários reconhecem que o médico sustenta o uso frequente do serviço ao indicar que o usuário deve ir à unidade se for preciso: “qualquer coisa que acontecer, corre aqui” (U3).

Na dimensão organizacional, percebe-se que há uma limitação imposta no número de queixas permitido abordar em cada consulta. Caso haja mais de uma demanda, o usuário é orientado a retornar à UBS e realizar um novo acolhimento e consulta: “[...] se naquele dia ele vir assim: ‘eu queria aproveitar e pedir um exame’, mas a tua queixa era renovação de receita, então você vai ter que passar pelo acolhimento e vai ter que solicitar um novo agendamento para solicitar exames [...]” (P1).

Tanto o incentivo dos profissionais quanto a imposição de retornar para avaliação de queixas adicionais, trocas de receitas e encaminhamentos levam à produção de um “hiperutilizador fabricado” pelo próprio sistema de saúde ao adotar um modelo de atenção que privilegia a “queixa-conduta” em detrimento de um cuidado integral.

Surge com grande destaque, nas falas dos profissionais, a responsabilização do usuário pela maior demanda, decorrente principalmente da não adesão às “normas” ditadas pelas equipes: encaminhamentos, tratamentos e modificações dos hábitos de vida: “Geralmente a queixa se baseia por algo que não foi feito da parte deles, a gente fica meio que de mãos atadas” (P5). Em analogia ao “trabalhador-moral”, descrito por Cecilio3434 Cecilio LCO. O “trabalhador moral” na saúde: reflexões sobre um conceito. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):345-363. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832007000200012.
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, que segue todas as normas e programações dos gestores, o profissional também espera encontrar, muitas vezes, um “usuário-moral”, que obedeça exemplar e integralmente às regras e prescrições.

O vínculo construído pelo usuário com a equipe é visto não como algo salutar, mas como causa de demanda excessiva: “Não sei se no meio do lar deles não tem aquela atenção [...] eles criam um vínculo com a gente” (P6). As dificuldades nas abordagens das pessoas que procuram a UBS pelo vínculo ficaram mais claras nos Seminários Compartilhados: “Você percebe, mas como que você talvez vá mandar essa pessoa de volta? Então, muitas vezes, ela acaba passando por uma consulta” (SC1). Ou ainda: “[...] ela passa por problemas e precisava conversar com alguém ali. E o consultório médico acaba sendo o lugar que ela acha” (SC1).

Um jeito de cuidar onde predomina o modelo biomédico faz que a busca motivada pelo vínculo seja transformada em consultas médicas ou procedimentos, com o risco cada vez maior de medicalização excessiva ou pedidos de exames desnecessários, “fazendo de uma interminável sucessão de consultas, exames e procedimentos o centro da vida”3535 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: Ministério da Saúde; 2009..

Tendo como referência as múltiplas dimensões do cuidado propostas por Cecilio3232 Cecilio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-599. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832011000200021.
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, foi possível observar que mudanças implantadas para pensar o cuidado aos usuários se revertem em mais normatizações, mais regras; buscam racionalizar a Atenção à Saúde, porém não incluem ou consideram as singularidades nas dimensões sistêmicas e organizacionais do cuidado. Nem todas as pessoas precisam de uma Atenção à Saúde que fuja às normas e protocolos estabelecidos, mas quando isso se torna necessário há resistências dos profissionais.

As regras, prescrições e normas encontram o usuário fabricador: é possível dialogar?

Os usuários fabricadores2525 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza LM, Anfrade MGG, Santiago SM, et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; 2014. surgem do protagonismo das pessoas que à sua moda produzem caminhos, que só em parte correspondem à normalização oficial do sistema, e buscam soluções para as suas necessidades. São usuários que “transgridem a regra”, produzindo dessa forma o “seu sistema de saúde”. O usuário no seu protagonismo, na busca pelo seu cuidado, passa a desafiar a equipe e os profissionais. A composição, o espaço do encontro harmonioso e realizado dentro das normas instituídas, passa a gerar uma cisão e a ser vista como um problema pela equipe.

Os usuários entrevistados não percebem modificações em seu cuidado que possam ser vistas como punições por estarem frequentemente na unidade. Já os profissionais negam qualquer alteração no atendimento prestado aos hiperutilizadores. Apesar disso, pode haver “punições” aos pacientes considerados difíceis, tais como negar a prescrição de novas receitas, quando os usuários as perdem, ou ofertar uma vaga para consulta a um usuário que, na visão da equipe, vai aderir melhor ao tratamento3636 Zaboli ELCP, Santos DV, Schveitzer MC. Pacientes difíceis na atenção primária: entre o cuidado e o ordenamento. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):893-903. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0500.
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.05...
. Também se observa uma tendência maior a encaminhamentos e solicitações de exames, em uma tentativa de evitar retornos precoces ou novas consultas22 Bellón JA, Fernández-Asensio ME. Emotional profile of physicians who interview frequent attenders. Patient Educ Couns. 2002; 48(1):33-41..

Embora os usuários não relatem discussões ou conflitos, parte dos profissionais indica que as pessoas que buscam atendimento com maior frequência são mais propensas a participar de discussões, principalmente com a equipe de enfermagem e da recepção, responsáveis muitas vezes pela triagem e pelo acolhimento inicial: “Tem figurinhas que a gente já conhece sim, que dependendo já vão ser mais hostis. Não são muitos, mas tem sim” (P5). Outros profissionais acreditam que os hiperutilizadores, por conhecerem melhor a equipe, acabam criando um maior vínculo, resultando em um melhor relacionamento entre usuários e profissionais, afinal “[...] sabem como a gente funciona, como é a rotina, como é o fluxo e eles respeitam mais o fluxo” (SC2).

Os profissionais indicam que esses usuários são considerados pacientes difíceis: “Aquele paciente que a gente respira fundo para atender mais uma vez [...]” (P4). Um dos motivos do incômodo causado por esses usuários seria o questionamento em relação à própria capacidade profissional. Os profissionais questionam se as condutas propostas são corretas ou suficientes, já que “o hiperutilizador gera um estresse mesmo, não porque você se cansa de ver aquele paciente [... mas] porque você acha que o que você está fazendo não está dando certo. Parece que a gente não está acertando no diagnóstico ou no tratamento” (P3).

Outro motivo que torna essa pessoa um usuário difícil é o fato de, na maioria das vezes, possuir doenças crônicas, cujo controle exige, além de medicamentos, orientações sobre as condições e os hábitos de vida: “Acho que fica muito redundante, você fala a mesma coisa na consulta, parece que você está chovendo no molhado.” (SC1).

Apesar das dificuldades de oferecer cuidado a essas pessoas, os profissionais afirmam que sentem grande satisfação quando ocorre a melhora clínica deles:

Esses pacientes hiperutilizadores às vezes me fazem pensar se realmente eu estou no lugar certo porque eles sugam bastante a energia, mas quando um deles de tanto a gente martelar, eles conseguem entrar no caminho certo [...] quando a gente consegue uma vitoriazinha a gente fala então valeu a pena, deu certo

(P4)

Nos Seminários Compartilhados a questão dos hiperutilizadores retorna à dimensão sistêmica da gestão do cuidado. Ou seja, os trabalhadores acreditam que é preciso mais controle, mais normas, pois o sistema pode ficar sobrecarregado por aqueles que usam muito: “[...] é um paciente que onera o sistema, porque às vezes ocupa a vaga de um outro que poderia estar aí [...] Mas aí a gente acaba sobrecarregando e insistindo com aqueles mesmos pacientes o tempo inteiro” (SC2).

A produção do cuidado aos “hiperutilizadores’’: há encontros possíveis?

As estratégias utilizadas pelos profissionais para ofertar cuidado aos hiperutilizadores buscam atender às necessidades percebidas pelos profissionais, vinculadas preponderantemente ao saber operatório da biomedicina: medicamentos, regras prescritivas que não consideram necessariamente os modos de existência das pessoas, exames e encaminhamentos. Não há uma tentativa de envolver o paciente no seu cuidado ou desenvolver um projeto terapêutico singular que seja efetivamente cuidador.

Os profissionais relatam a preocupação de diagnósticos clínicos poderem passar despercebidos pela desvalorização das queixas dos hiperutilizadores e afirmam redobrar a atenção no atendimento:

[...] acho que com essa hiperutilização a gente tem a tendência de “ai, de novo”, “mais uma vez com a mesma coisa”, então a gente sempre tem que acender aquela luzinha de será que não é algo novo? Será que não aconteceu realmente alguma coisa?

(P4)

Os profissionais afirmam que se fossem implantadas estratégias para restringir o acesso do usuário, como cobranças por desembolso direto, haveria diminuição da frequência de atendimentos dos hiperutilizadores. “Ele ia pensar dez vezes antes de vir, se tivesse que pagar.” (SC2).

O “agir leigo”, segundo Cecilio2525 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza LM, Anfrade MGG, Santiago SM, et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; 2014., surge do protagonismo de homens e mulheres em busca do cuidado que julgam necessário para si, desenvolvendo práticas regulatórias próprias pelo conhecimento adquirido dos mecanismos formais de regulação ou, mais ainda, pelo conhecimento de como contornar essas regras para alcançar seus objetivos. Durante os Seminários Compartilhados, vários profissionais relataram que percebem o “agir leigo” em ação e que inclusive os usuários adquirem o conhecimento sobre quais profissionais são mais colaborativos para os seus pedidos, além de conhecerem até o funcionamento das escalas de trabalho.

Por meio das múltiplas formas de regulação e fluxos criados pelo paciente no “seu” circuito de saúde, o usuário, à sua maneira, vai construindo o seu mapa de cuidado2525 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza LM, Anfrade MGG, Santiago SM, et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; 2014., utilizando suas relações, muitas vezes compondo um mix público-privado, escolhendo os encaminhamentos e tratamentos que julga necessários. A busca pelo setor privado ocorre entre outros motivos pela constatação da ineficácia do sistema público, pela crença geral do melhor atendimento do médico privado3737 Carapinheiro G. Inventar percursos, reinventar realidades: doentes, trajetórias sociais e realidades formais. Etnografica. 2001; 5(2):335-358., além da demora do agendamento para procedimentos, exames e consultas com especialistas3838 Meneses CS, Cecilio LCO, Andreazza R, Carapinheiro G, Andrade MGG, Santiago SM, et al. O agir leigo e a produção de mapas de cuidado mistos público-privados. Cienc Saude Colet. 2017; 22(6):2013-2024.: “se quiser acelerar, tem que pegar o papel e ir no particular” (U6). A composição do cuidado com o setor privado, em nosso estudo, ocorreu de forma espontânea pelos usuários, sem haver a indução pelos profissionais para que usuários utilizassem os serviços, não no setor público, mas no privado3737 Carapinheiro G. Inventar percursos, reinventar realidades: doentes, trajetórias sociais e realidades formais. Etnografica. 2001; 5(2):335-358..

Por outro lado, percebemos que a rede de atendimento não apresenta articulação entre os setores para adequar o cuidado do paciente, que muitas vezes não sabe qual caminho seguir: “Até o pessoal da UPA fala: ‘mas por que você não foi no posto?’. Daí eu falo: ‘o posto falou que eu tinha que vir aqui’, ‘não, esse problema tem que resolver lá’, eles falam pra mim” (U1).

Porém, quando ocorre a tentativa do atendimento em rede, os profissionais percebem que os hiperutilizadores, quando encaminhados, não participam dos grupos multidisciplinares das unidades e muitas vezes não comparecem às consultas e aos encaminhamentos propostos pela equipe: “Mas eu observo que esses pacientes que demandam mais, eles não participam dos grupos” (P1).

Há pistas de que a produção do cuidado, com base no entendimento das diferentes necessidades dos usuários, pode ser o mote para a realização do encontro imprescindível entre os usuários e os profissionais. Surgem nas falas dos profissionais, nesse último diálogo, algumas aberturas para a construção de um plano comum, de uma “zona de mediação”, para um maior compartilhamento das decisões e do encaminhamento para o cuidado. Um espaço de interação, de interlocução, de negociação, não subsumido às racionalidades e às regras da gestão e/ou ao comando do saber biomédico para a operação da clínica, necessário, mas que se apresenta cada vez mais claro como insuficiente, principalmente para o cuidado das condições crônicas, em condições de alta vulnerabilidade social.

Considerações finais

Embora seja esperado que os usuários utilizem a UBS como sua referência e porta de entrada do sistema e que, por isso, façam uso de forma regular de todos os serviços que são disponibilizados pelo local, fica claro desde os primeiros contatos com os profissionais que há um grupo de usuários que chama a atenção da equipe ou lhe causa desconforto, por frequentar de forma excessiva ou desnecessária a unidade, na visão dos profissionais que atuam nas duas UBS estudadas.

A maneira como os profissionais que atuam na ABS definem quem é um usuário “hiperutilizador” é mais complexa do que o número total de consultas em um determinado período de tempo, e passa pela identificação das necessidades em saúde que motivam a busca por cuidados em saúde. Nesse sentido, os usuários que apresentam necessidades, que fogem do alcance do modelo biomédico, muitas vezes não têm as suas carências corretamente identificadas ou até mesmo consideradas como legítimas pelos profissionais, sendo considerados “hiperutilizadores”, independentemente do número de consultas.

O estudo dos usuários considerados “hiperutilizadores” pelas equipes serviu como um analisador da ABS, pois demonstra que estamos ainda aquém do que pretendemos. Mantemos um modelo ainda “ambulatorial”, centrado na racionalidade biomédica, com pouca abertura para a “vida como ela é” e com menos ainda possibilidades de interlocução com o conhecimento e o “agir-leigo”.

É necessária a compreensão de que devemos agir de modo “que cada pessoa, com suas múltiplas e singulares necessidades, seja, sempre, o foco, o objeto, a razão de ser, de cada serviço de saúde e do “sistema” de saúde”3131 Cecilio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção. In: Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2009. p. 117-130.. Dessa maneira, poderemos melhorar o cuidado à saúde dessas pessoas acabando com o ciclo vicioso do usuário que frequenta cada vez mais a unidade, mas não recebe o cuidado necessário.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2021
  • Aceito
    09 Fev 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br