Avaliação da puericultura na Estratégia Saúde da Família em município-sede de macrorregião de saúde

Evaluation of childcare in the Family Health Strategy in a municipality in the health macro-region

Pamela Lorrane Ribeiro da Silva Ítalo Ricardo Santos Aleluia Anderson Freitas de Santana Lucas Toriyama Ribeiro Sobre os autores

Resumo

Avaliou-se a puericultura na ESF em município-sede de macrorregião de saúde do Nordeste brasileiro. Realizou-se estudo avaliativo com dois níveis de análise: a gestão municipal e local. Aprofundou-se a avaliação local em quatro EqSF mediante entrevistas com gestores, profissionais e puérperas, análise documental e observação não-participante. As fontes de dados foram trianguladas e processadas no software Nvivo, e o material empírico cotejado com uma situação-objetivo segundo os níveis de análise da pesquisa e elaborada pelos pesquisadores. No nível municipal, a definição clara de atribuições para os pontos de atenção em puericultura e fluxos assistenciais foi um dos critérios mais críticos e, no âmbito local, a integração de ações com outros serviços primários, a contrarreferência e ações educativas coletivas no território. A implementação das práticas de puericultura nas EqSF é fortemente dependente dos determinantes político-organizacionais entre o âmbito municipal e local, e os resultados aqui evidenciados podem se aplicar a outros sistemas municipais de saúde com configurações semelhantes. Este estudo contribuiu para a avaliação da puericultura sustentada na proposição de critérios que consideraram a interdependência municipal e local na organização das ações de avaliação do crescimento e desenvolvimento infantil.

Palavras-Chave:
Avaliação em saúde; Estratégia Saúde da Família; Puericultura; Saúde infantil

Abstract

Childcare was evaluated in the ESF in a municipality that is the headquarters of a health macro-region in the Brazilian Northeast. An evaluative study was carried out with two levels of analysis: municipal and local management. The local assessment was deepened in four EqSF through interviews with managers, professionals and postpartum women, document analysis and non-participant observation. The data sources were triangulated and processed in the Nvivo software, and the empirical material was compared with an objective situation according to the research analysis levels and prepared by the researchers. At the municipal level, the clear definition of assignments for childcare care points and assistance flows was one of the most critical criteria and, at the local level, the integration of actions with other primary services, counter-referral and collective educational actions in the territory. The implementation of childcare practices in EqSF is strongly dependent on political-organizational determinants between the municipal and local levels, and the results shown here may apply to other municipal health systems with similar configurations. This study contributed to the evaluation of childcare based on the proposition of criteria that considered municipal and local interdependence in the organization of actions to evaluate child growth and development.

Keywords:
Health assessment; Family Health Strategy; Childcare; Children's health

Introdução

As práticas de puericultura são destinadas a prevenção e promoção de saúde da criança, com o objetivo de acompanhar seu desenvolvimento e crescimento. Elas são fundamentais para a vigilância e identificação precoce de riscos à saúde infantil e estão associadas a ações de educação em saúde da criança e seus familiares, ao monitoramento da cobertura vacinal, a orientações sobre o aleitamento materno e introdução de alimentação complementar, à avaliação de habilidades neuropsicomotoras, entre outras (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2012.; Caminha ., 2017CAMINHA, M. F. C. et al. Vigilância Do Desenvolvimento Infantil: Análise Da Situação Brasileira. Revista Paulista de Pediatria, 2017.; Machado ., 2021MACHADO, C. S. et al. Caracterização das crianças atendidas em puericultura na atenção primária à saúde. Nursing (São Paulo), v. 24, p. 6846-6857, 2021.; Soares ., 2016SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.).

O Brasil instituiu, desde a década de 70, as primeiras propostas de organizar respostas voltadas ao cuidado materno-infantil. Todavia, as ações propostas restringiam-se ao pré-natal, e apenas em 1984 a puericultura ganhou destaque, com a criação Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança (PAISC) (Soares ., 2016SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.). Desde então, diversas estratégias foram instituídas no país e variaram da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (2015), cujas diretrizes deram maior destaque ao acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança: orientações para implementação. Brasília: Ministério da Saúde, 2018.).

Nesta direção, alguns autores ressaltam o papel estratégico da Atenção Primária à Saúde (APS), por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), como lócus de cuidado estratégico para as ações de puericultura, pois é no âmbito dos cuidados primários que se iniciam as ações de acompanhamento pré-natal que orientarão o monitoramento do crescimento e desenvolvimento infantil quanto aos riscos e agravos evitáveis (Machado ., 2021MACHADO, C. S. et al. Caracterização das crianças atendidas em puericultura na atenção primária à saúde. Nursing (São Paulo), v. 24, p. 6846-6857, 2021.; Soares ., 2016SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.; Slutsker; Schillinger, 2018).

Por um lado, o número de nascidos vivos no Brasil alerta para a importante demanda de crianças que necessitarão de cuidados pela ESF e, do outro, o desafio da APS na prevenção de óbitos infantis evitáveis e sua multifatorialidade de determinantes sociais envolvidos (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de vigilância do óbito infantil e fetal e do comitê de prevenção do óbito infantil e fetal. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.). Dados mais atuais de 2020 revelam que o país registrou 2.726.025 nascimentos e cerca de 31.347 óbitos evitáveis, sendo estes últimos, mais frequentes no Sudeste (11.034) e Nordeste (9.979) (BRASIL, 2022BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Brasileiro. Informações demográficas de Barreiras. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=290320&gt>. Acesso em: 16 mar. 2022.
https://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil...
).

No âmbito internacional, os estudos mais recentes sobre as ações de puericultura foram identificados no Reino Unido, Espanha, África e Sudão (Cecil ., 2018CECIL, E. et al. Impact of preventive primary care on children’s unplanned hospital admissions: A population-based birth cohort study of UK children 2000-2013. BMC Medicine, v. 16, n. 1, p. 1-11, 2018.; Fernandez et al., 2019; Magge ., 2017MAGGE, H. et al. Tackling the hard problems: implementation experience and lessons learned in newborn health from the African Health Initiative. BMC Health Services Research, v. 17, n. S3, 2017.; Sami ., 2018SAMI, S. et al. Understanding health systems to improve community and facility level newborn care among displaced populations in South Sudan: A mixed methods case study. BMC Pregnancy and Childbirth, v. 18, n. 1, p. 1-12, 2018.). As evidências apontaram, como semelhança, que o acesso oportuno à APS colaborou para o menor risco de internações hospitalares evitáveis e a redução de consultas pediátricas realizadas nos primeiros seis meses de vida. Todavia, um dos principais obstáculos para a implantação da puericultura envolve a gestão dos serviços de saúde e a falta de qualificação para os profissionais atuarem na área.

No Brasil, as evidências sobre a puericultura na APS apontam diferentes impactos sobre a saúde infantil. A proximidade dos serviços com a comunidade aumenta o vínculo nas ações desenvolvidas, o trabalho em equipe e as estratégias de acolhimento tornam-se mais qualificados e há maior adesão à amamentação exclusiva e continuidade do cuidado infantil, mediante a realização de visitas domiciliares (Alves; Gaiva, 2019; Brigido; Santos; Prado, 2019; Carvalho ., 2018CARVALHO, M. J. L. N. et al. Primeira Visita Domiciliar Puerperal: uma Estratégia Protetora do Aleitamento Materno Exclusivo. Revista Paulista de Pediatria, v. 36, n. 1, p. 66-73, 2018.).

No entanto, prevalecem desafios para as Equipes de Saúde da Família (EqSF) mobilizarem as comunidades sobre a importância da puericultura, com baixa adesão às consultas infantis, falta de qualificação profissional, de infraestrutura nas unidades de saúde e a persistência do modelo médico-assistencial (Goes ., 2018GOES, F. G. B. et al. Contribuições do enfermeiro para boas práticas na puericultura: revisão integrativa da literatura. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 29, n. 6, p. 2808-2817, 2018.; Pedraza; Santos, 2017). Destacam-se, também, a subutilização da Caderneta de Saúde da Criança (CSC) e um precário registro da referência e contrarreferência de crianças, entre os diferentes pontos de atenção à saúde (Caminha ., 2017CAMINHA, M. F. C. et al. Vigilância Do Desenvolvimento Infantil: Análise Da Situação Brasileira. Revista Paulista de Pediatria, 2017.; Aires ., 2017AIRES, L. C. P. et al. Reference and counter-reference health care system of infant discharged from neonatal unit: perceptions of primary care health professionals. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, v. 21, n. 2, p. 1–7, 2017.).

Em suma, a literatura revelou que, no âmbito internacional, a maioria dos estudos sobre puericultura ainda está em andamento e tem resultados pouco conclusivos. No Brasil, a produção científica sobre o tema concentra-se no Sudeste, com abrangência local e abordagem predominantemente exploratória. Posto isso, o presente artigo pretende contribuir com um enfoque mais analítico, centrado em uma imagem-objetivo que articula critérios avaliativos centrados tanto no nível municipal quanto local das EqSF. Isso possibilitará identificar quais características do sistema municipal de saúde e territoriais facilitam ou restringem o desenvolvimento das práticas de puericultura.

O objetivo deste artigo foi avaliar a puericultura na ESF em município-sede de macrorregião de saúde do Nordeste brasileiro.

Método

Trata-se de estudo avaliativo que adotou como objeto as práticas de puericultura na APS e utilizou como estratégia investigativa o estudo de caso municipal com abordagem qualitativa (Yin, 2005YIN, R.K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3 ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.) e intensiva em dois níveis de análise: a organização do sistema municipal de saúde e a organização local da EqSF.

O cenário do estudo ocorreu em sistema municipal de saúde de grande porte, sede de macrorregião de saúde na Bahia, com população estimada em 157.683 habitantes, com ampla extensão territorial (7.538,152 km²), densidade demográfica de 17,49 hab/km² (2010), PIB per capita estimada em R$ 33.313,17 (2019), localizado a 853 km da capital baiana e 622 km da capital federal (Barreiras, 2018BARREIRAS. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde 2018-2021. Conselho Municipal de Saúde. 185 p.).

A APS municipal possuía 27 EqSF implantadas, com cobertura populacional da ESF de 59%, dois Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) tipo I, 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS), 10 postos de saúde com Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS) implantado (BARREIRAS, 2018BARREIRAS. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde 2018-2021. Conselho Municipal de Saúde. 185 p.).

Para aprofundar a análise das práticas de puericultura no nível local, selecionaram-se quatro EqSF considerando os seguintes critérios: equipes completas; com pelo menos um ano de implantação; localização (três urbanas periféricas e uma urbana central); com melhor organização do processo de trabalho e crianças de até dois anos cadastradas nas áreas de abrangência das equipes; e apoiadas pelo NASF-AB (Quadro 1).

Quadro 1
Caracterização das EqSF selecionadas para o estudo

Na produção dos dados, utilizou-se a análise documental das agendas e trabalho das EqSF, as CSC, os Planos Municipais de Saúde (PMS) (2014-2017 e 2018-2021) e seus respectivos Relatórios Anuais de Gestão (RAG), além de entrevistas semiestruturadas com mães de crianças menores de dois anos acompanhadas pelas EqSF, profissionais de saúde e gestores da APS, bem como a observação do processo de trabalho das equipes. A produção dos dados ocorreu entre agosto e novembro de 2019. Tanto nas entrevistas como na análise documental, adotaram-se roteiros semiestruturados construídos pelos pesquisadores, quadros para sistematização das informações documentais e diário de campo para registro dos achados observacionais, que complementaram o material empírico da pesquisa.

A seleção dos participantes da pesquisa foi realizada pelo método snowball (Parker; Scott, 2019), no qual informantes-chave indicavam pessoas elegíveis para as entrevistas. Os critérios adotados para seleção das mães de crianças foram: mulheres acima de 18 anos com filhos de até dois anos de idade; que realizavam acompanhamento na EqSF avaliada; e que concordaram em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Em relação aos profissionais, foram entrevistados os que estavam diretamente ligados ao acompanhamento infantil (enfermeiro e médico) e que possuíam, no mínimo, um ano de atuação na equipe. Quanto aos gestores, os critérios foram ter pelo menos um ano de gestão na APS municipal; ser gestor do apoio institucional das equipes escolhidas e com pelo menos um ano de exercício na função.

O número de participantes do estudo foi determinado pela realização de entrevistas com os principais atores envolvidos no processo de gestão e atenção em puericultura, em ambos os níveis de análise do estudo, e pela saturação das informações relativas às ações de puericultura na APS municipal. No total, entrevistaram-se 33 participantes, sendo 22 mães de crianças, quatro enfermeiros, quatro médicos e três atores da gestão municipal. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra.

O material empírico oriundo das entrevistas, análise documental e diários de campo dados foi triangulado e processado com apoio do software QRS Nvivo, versão 11. A etapa de processamento correspondeu a uma leitura exaustiva do material e codificação das informações segundo os níveis de análise municipal e local. Em seguida, realizou-se o cotejamento do material com uma Situação-Objetivo (SO) elaborada pelos pesquisadores, com dimensões e critérios avaliativos da puericultura na APS (Quadro 2).

Quadro 2
Situação-objetivo para avaliação das práticas de puericultura na Atenção Primária à Saúde (APS)

A SO foi elaborada a partir de revisão nacional e internacional de artigos e de protocolos nacionais de puericultura na APS. Ela apresenta critérios avaliativos para o nível municipal e local das EqSF. Para cada critério, atribuem-se “situações” que variaram entre “satisfatória”, “intermediária” a “insatisfatória”, em relação à aproximação ou distanciamento do cenário avaliado ao que recomenda a literatura e os protocolos para a puericultura na APS. A SO totaliza 100 pontos, cujo maior peso (70 pontos) foi atribuído ao nível local das EqSF, por ser o cenário estratégico de implementação das práticas de puericultura. Entre os critérios, também foram atribuídos pesos diferentes, considerando sua importância, complexidade e interdependência entre os níveis municipal e local para seu alcance satisfatório. No âmbito de cada critério, as situações que variaram de “satisfatória” a “insatisfatória” também tiveram pesos distintos na pontuação, e isso foi determinado pelo papel estratégico que o alcance satisfatório do critério desempenha na implementação da puericultura na APS (Quadro 2).

A proposta da SO foi validada em técnica de consenso que contou com cinco especialistas, selecionados a partir dos seguintes critérios: ser especialista em Saúde Coletiva e/ou Saúde Pública e/ou Saúde da Família e/ou Atenção Básica/Atenção Primária à Saúde, atuar há pelo menos um ano na gestão ou atenção materno-infantil, possuir experiência mínima de um ano na APS. A validação foi realizada através do Método Delphi (Makhmutov, 2021MAKHMUTOV, R. The Delphi method at a glance. Pflege, v. 34, n. 4, p. 221-221, 2021.), em rodada única, eletrônica e anônima, na qual os especialistas receberam uma planilha com os critérios a serem validados e seu objetivo de avaliação, e puderam atribuir a pertinência (sim ou não) e grau de relevância (0 – irrelevante; 1- relevante, 2- muito relevante); quando cabível, era possível adicionar comentários a uma coluna de observações. A permanência e revisão dos critérios levou em conta a análise qualitativa dos comentários e quantitativa. Nesta última, considerou-se a moda para avaliar qual critério avaliativo teve maior consenso quanto à pertinência e relevância.

A análise dos dados correspondeu ao cotejamento do material empírico codificado com os critérios avaliativos e as “situações esperadas”, buscando-se identificar em que medida o nível municipal e local se aproximava ou se distanciava das situações estabelecidas e suas respectivas pontuações (Quadro 2). A atribuição da pontuação total de cada nível avaliativo considerou a seguinte classificação, distribuída em tercis: a) nível municipal – Insatisfatório < 11 pontos; Intermediário > 11 e < 20 pontos; e Satisfatório > 21 pontos. No nível local - Insatisfatório < 23,3 pontos; Intermediário > 23,4 e < 46,6 pontos; e Satisfatório > 46,7.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Oeste da Bahia, sob o nº CAAE 16557219.8.0000.8060, e todos os participantes assinaram o TCLE.

Resultados

Este estudo evidenciou que o nível de organização do sistema municipal de saúde e o nível local alcançaram pontuações intermediárias em relação às práticas de puericultura (14,5), variando de 35 a 41,5, respectivamente. No nível organizacional, ratificou que a oferta de vacinas na infância tem sido o critério de menor dificuldade de implantação pela gestão municipal, enquanto a definição de atribuições para os pontos de atenção e de fluxos assistenciais para puericultura ainda se apresenta como critério crítico de implantação nos sistemas municipais de saúde (Tabela 1).

Tabela 1
Pontuação da organização do sistema municipal nos critérios avaliativos da atenção puerperal

No nível local, evidenciou-se que a avaliação do crescimento e desenvolvimento infantil em todas as consultas foi o critério de melhor desempenho, e aqueles com maiores obstáculos de implantação no território se relacionam com atividades integradas com o NASF-AB, contrarreferência e realização de ações educativas coletivas na comunidade, voltadas à puericultura (Tabela 2).

Tabela 2
Pontuação das EqSF avaliadas nos critérios avaliativos da atenção puerperal

Neste artigo, apresentam-se os resultados em duas subseções organizadas a partir dos níveis analíticos da pesquisa. A primeira com evidências dos obstáculos de organização municipal para ações de puericultura, e a segunda, com obstáculos do nível local.

As ações de puericultura e a organização do sistema municipal de saúde

A análise dos Planos Municipais de Saúde (PMS) e Relatórios Anuais de Gestão (RAG) revelou que, embora a gestão municipal defina ações para ampliar o papel da APS como contato preferencial de usuários para a puericultura, isso não se traduz na sua efetiva implantação, existindo um hiato entre o projeto de governo municipal e sua execução. Essa evidência foi confirmada nas entrevistas com profissionais e mães de crianças, que embora reconheçam a APS como porta de entrada preferencial do sistema de saúde, nas situações de urgências, as EqSF não se efetivam como serviços de primeiro contato (Quadro 3).

Quadro 3
Evidências e excertos sobre a organização do sistema municipal para a atenção puerperal na Estratégia Saúde da Família

Nas entrevistas com profissionais e gestores, revelou-se que as gestões municipais pouco desenvolvem estratégias de adaptação dos protocolos nacionais de puericultura para as singularidades locais. Isso foi evidente diante da existência de apenas um protocolo municipal de enfermagem de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil.

O presente estudo evidenciou a persistência de entraves na organização dos sistemas municipais de saúde quanto à definição de atribuições para os pontos de atenção nas ações de puericultura, descentralizando esta responsabilidade para as EqSF. Inexistiam documentos contendo atribuições definidas para os serviços, e os profissionais e gestores não mencionaram qualquer evidência sobre iniciativas municipais de definição de tais atribuições.

Os documentos e entrevistas com gestores ratificaram que a organização municipal das qualificações de profissionais da APS ainda opera num regime sazonal e pouco contempla temáticas relativas à puericultura na ESF. Ademais, nos PMS analisados havia propostas da gestão para melhorias do programa municipal de imunização, entre elas, a garantia do acesso a vacinas do SUS e a ampliação da variedade de imunobiológicos. Apesar dessa intencionalidade, a análise dos RAG permitiu identificar dificuldades de alcançarem a meta de cobertura vacinal de crianças estabelecida pelo Ministério da Saúde (95%) e que a oferta dos imunizantes mantém forte dependência da distribuição nacional, o que influencia a governabilidade da gestão municipal no abastecimento das unidades de saúde.

Ainda sobre a imunização infantil, vale reiterar desafios importantes para sua organização nos cenários rurais, dadas as dificuldades para a gestão municipal garantir condições estruturais e logísticas satisfatórias. Ocorrem, assim, barreiras de acesso aos imunizantes e a descontinuidade das imunizações.

A análise documental e as entrevistas com profissionais e gestores confirmaram que a organização de fluxos assistenciais para a puericultura não tem sido priorizada na agenda de gestão municipal e que isso induz as EqSF adotarem seus próprios fluxos sem uma diretriz municipal estabelecida. Todavia, no sistema municipal em questão, a existência de um sistema de marcação de consultas e exames especializados, informatizado e descentralizado para as EqSF, viabilizava a governabilidade do âmbito local no encaminhamento das crianças com necessidades de acompanhamento especializado, enquanto que a centralização do agendamento de serviços de alta complexidade em uma Central de Regulação Municipal (CRM) restringia a capacidade de coordenação assistencial da ESF, nas situações de crianças e que necessitavam desses serviços, cujas mães eram condicionadas a comparecerem pessoalmente na CRM para realizar as marcações.

O presente estudo identificou que a organização do sistema municipal pode criar desigualdades de coordenação da assistência em puericultura entre EqSF, quando há necessidade de encaminhar crianças para outros pontos de atenção. Nas equipes urbanas, os agendamentos tendem a ocorrer no âmbito local e facilitam a prestação do cuidado, pelas possibilidades de acesso a sistemas informatizados de marcação. Nas rurais, é comum a ausência de sistemas de marcação informatizados que condicionam os processos de agendamento a ocorrerem de forma centralizada na gestão municipal.

Um dos fatores limitantes da organização do sistema municipal é a insuficiência na oferta de consultas e exames especializados para o cuidado infantil. Gestores e profissionais ratificaram que este cenário produz desigualdades na distribuição de serviços pediátricos de referência para as EqSF encaminharem os casos que necessitam de acompanhamento especializado. Mesmo diante de um quantitativo importante de pediatras no município, isso não torna suficiente a garantia do acesso quando existe distribuição desigual das consultas para retaguarda às EqSF. Além disso, a dupla atuação dos pediatras tanto nos serviços públicos quanto privados do município criava uma sobreposição de agendas desses profissionais e limitava a organização das ofertas de consultas condizentes com as necessidades locais da APS.

Quanto aos exames complementares de rotina para crianças de até dois anos, havia importante dificuldade para a gestão municipal estabelecer diretrizes para sua oferta baseada em critérios de vulnerabilidade. Predomina o modelo de oferta em “cotas”, baseado em critérios administrativos e contraditório às propostas do PMS. Profissionais e gestores afirmaram que esse modelo organizacional contribui para sucessivos remanejamentos nas “cotas” de exames entre equipes de APS e atravessamentos locais.

Em suma, profissionais e gestores foram unânimes sobre a organização de um sistema de referência e contrarreferência operado manualmente, inviabilizando a contrarreferência das crianças e colaborando para fragmentação das ações de puericultura.

As ações de puericultura e a organização local das EqSF

Este estudo identificou que, no âmbito local, podem coexistir diferentes cenários de agendamento e atendimento das consultas de puericultura. Há EqSF que apresentam agendas de trabalho mais flexíveis e outras fragmentadas em turnos, dias e horários específicos. Esta última tem sido a mais frequente, de modo que a dinâmica local de marcação e atendimento segue um padrão organizacional determinado pelas EqSF, e não pelas necessidades do território (Quadro 4).

Quadro 4
Evidências e excertos sobre a organização local da atenção puerperal na Estratégia de Saúde da Família

As entrevistas com os profissionais das EqSF ratificaram a persistência de fragilidades no acolhimento infantil, que tende a centrar-se na enfermeira, sem a participação de toda a EqSF. Em relação ao incentivo à amamentação, as entrevistas com as puérperas e profissionais foram convergentes sobre a heterogeneidade local desta prática, variando de EqSF que realizam este incentivo desde o pré-natal, enquanto outras não apresentaram meios para desenvolver tais ações. Este cenário polarizado contradiz a diretriz municipal de promover o aleitamento até os dois anos de idade, sobretudo o exclusivo até os seis meses.

Houve bom desempenho do âmbito local na realização de orientações sobre cuidados infantis e na pesagem das crianças durante as consultas, destacando-se o papel indutor do Programa Bolsa Família (PBF). Contudo, vale destacar limitações na pesagem domiciliar das crianças, quando há problemas estruturais das equipes, a exemplo da ausência de balança para deslocamento até os domicílios ou quando há crianças residentes em território sem cobertura de ACS.

A realização da avaliação do crescimento e desenvolvimento infantil baseada na CSC, em todas as consultas, tem sido comum na ESF. No entanto, houve divergências entre os profissionais e as fontes documentais (prontuários e CSC) quanto à realização de avaliação do perímetro cefálico das crianças em todas as consultas. Este achado parece revelar uma contradição entre as avaliações infantis e o registro completo das informações clínicas.

A oferta de imunizantes não tem sido um obstáculo rotineiro para o nível local realizar ações de imunização infantil. Todavia, tais práticas são determinadas pela baixa adesão das mães de crianças à vacinação e pela capacidade operacional das EqSF para realizar a busca ativa das crianças, principalmente em territórios sem cobertura de ACS.

Os profissionais das EqSF avaliavam o desenvolvimento infantil baseados na CSC. Entretanto, a análise desses documentos e as entrevistas com mães de crianças revelaram que ainda persistem cenários de registros incompletos das informações e de baixa oferta de orientações sobre a CSC aos pais. Quanto às visitas domiciliares a crianças menores de dois anos, embora seja uma prática comum, tende a ser comprometida e fragmentada em territórios com desigualdades de cobertura de ACS.

Apesar da realização do acompanhamento de crianças com deficiência e encaminhamento destas para serviços de referência em reabilitação, não houve consenso, entre profissionais e mães, sobre a oferta de educação em saúde dirigida aos pais das crianças para estimulação precoce. Inclusive, as ações educativas coletivas para crianças e puérperas no território ainda permanecem como práticas de rara operacionalização pelas EqSF. Este achado foi confirmado pelos profissionais e mães que referiram o tangenciamento de tais práticas no processo de trabalho local.

Os encaminhamentos das crianças para outros serviços de saúde ainda eram realizados por meios manuais (relatórios e fichas de referência/contrarreferência). Em equipes não apoiadas pelo NASF-AB, os encaminhamentos eram menos qualificados, e nas apoiadas, havia maior efetividade na referência das crianças, dada a qualificação dos fluxos assistenciais pelos profissionais NASF-AB.

Por outro lado, um dos obstáculos da puericultura tem sido a capacidade de integração entre EqSF e o NASF-AB para realizar ações compartilhadas de promoção da saúde, dirigidas a crianças menores de dois anos. Ademais, no âmbito local ainda persiste a não institucionalização de critérios de vulnerabilidade e classificação de risco para a marcação de exames complementares pediátricos. Este achado tem sido reflexo de constrangimentos municipais produzidos sobre o processo de trabalho das EqSF, quando dispõem apenas da oferta de exames burocraticamente organizada no modelo de “cotas” municipais, sem qualquer correspondência com as necessidades dos territórios.

Por fim, havia uma baixa frequência de encaminhamentos das crianças para a atenção de urgência e emergência ou atenção hospitalar. Este achado pode indicar que as EqSF não têm se constituído como primeiro contato das crianças nas condições urgentes e emergentes. Além disso, a unanimidade sobre a ausência da contrarreferência ratificou a constante fragmentação na relação entre EqSF e demais pontos de atenção, sobre a comunicação de informações de crianças encaminhadas no sistema municipal de saúde. Na maioria dos casos, o retorno de informações para o âmbito local tem sido relatado verbalmente, pelas mães, durante consultas de retorno na APS.

Discussão

Este estudo evidenciou que, apesar das singularidades organizacionais das EqSF, os critérios de maior obstáculo na puericultura são semelhantes, e isso pode ser explicado pelos constrangimentos produzidos pela organização do sistema municipal de saúde. A interdependência entre os níveis de avaliação deste estudo confere diferentes desempenhos às ações de puericultura entre os territórios locais das EqSF.

A contradição entre a definição de diretrizes municipais de puericultura e sua implantação nos territórios locais pode representar consequências da incipiente participação dos trabalhadores e usuários na elaboração do plano de governo municipal, repercutindo na fragmentação de relações entre esses atores sociais e a gestão municipal necessárias para apoiar a execução das práticas de puericultura. Trata-se de um ponto crítico, já que a implementação das ações locais puerperais possui interdependência com a organização do sistema municipal de saúde.

A dificuldade da APS em se constituir como serviço de primeiro contato para as crianças nas urgências e emergências evidencia obstáculos de acesso organizacional para que os serviços locais assumam o papel de ordenadores do cuidado em puericultura nos sistemas municipais de saúde. De acordo com a literatura, trata-se de um problema recorrente não apenas na atenção das crianças, mas de outros grupos vulneráveis, tendo como fatores explicativos a precarização nas relações de trabalho e a ausência de fluxos formais para a atenção hospitalar, seja no âmbito nacional ou no internacional (Almeida, 2018ALMEIDA, P. F. et. al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, v. 42, n. 1, p. 244-260, set. 2018.; Cecil ., 2018CECIL, E. et al. Impact of preventive primary care on children’s unplanned hospital admissions: A population-based birth cohort study of UK children 2000-2013. BMC Medicine, v. 16, n. 1, p. 1-11, 2018.; Airers et al., 2017).

A adoção de protocolos de puericultura pelas EqSF, de cunho nacional, revela que as singularidades locais dos territórios têm sido negligenciadas na formulação das políticas municipais de puericultura, distanciando-as de um cuidado centrado na comunidade. Nessa direção, estudos destacam a necessidade da formulação de protocolos de puericultura que estejam coerentes com as singularidades locais dos diferentes contextos de implementação (Pedraza; Santos, 2017; Tavares, 2019).

O desenvolvimento das ações de imunização apenas induzido por uma agenda nacional representa um obstáculo importante do protagonismo municipal no planejamento de calendários vacinais que atendam às necessidades locais. Ademais, deve-se considerar as dimensões logística e infraestrutural de unidades de saúde rurais como pontos críticos que merecem maior atenção de gestores municipais, para reduzir iniquidades na oferta e execução das ações de imunização das crianças. Desigualdades de acesso a imunizantes entre territórios urbanos e rurais podem contribuir para coberturas vacinais heterogêneas nas EqSF.

Observou-se que a baixa adesão dos responsáveis legais ao processo de vacinação constitui um desafio para as EqSF manterem a cobertura vacinal dentro dos padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Algumas evidências justificam que a baixa adesão vacinal está associada a aspectos socioeconômicos, problemas de acesso organizacional, como horário de funcionamento das unidades, e de acesso geográfico, a exemplo da distância entre a residência e os serviços (Brígido ., 2019BRÍGIDO A. F. et al. Qualificação do Cuidado a Puericultura: uma Intervenção em Serviço na Estratégia de Saúde da Família. Rev Fund Care Online, v. 11, n. esp, p. 448-454, 2019.; Pedraza et al., 2019).

A inexistência de um sistema de marcação integrado entre todos os pontos de atenção produz constrangimentos municipais na comunicação entre EqSF e outros pontos de atenção à saúde das crianças. Outrossim, a pulverização do processo de marcação de consultas entre equipes urbanas e rurais revela desigualdades de informatização entre os serviços de cuidados primários na puericultura. Nos territórios rurais, em especial, tais desigualdades se refletem na acessibilidade geográfica das marcações de consultas especializadas e contribuem para a centralização desse processo na sede municipal, criando maiores obstáculos para famílias com menor poder aquisitivo e que residem em territórios desprovidos de transporte público.

A oferta municipal de consultas pediátricas e exames complementares sem um sistema de classificação de risco e vulnerabilidade infantil inviabiliza o cuidado equitativo das crianças com necessidades de acompanhamento especializado. Achados semelhantes foram encontrados no âmbito internacional, em que uma das causas se relacionava com desigualdades na oferta territorial de pediatras (Botero et al., 2022). De acordo com Araújo . (2019ARAÚJO, P. O.; ASSIS, M. M. A.; SANTOS, A. M.; PEREIRA, M. J. B. A oferta por cotas para exames e consultas especializadas atende às demandas das unidades de saúde da família? Revista de Aps, [S.L.], v. 21, n. 3, p. 324-334, 30 jan. 2019.), este modelo de oferta também é ineficiente em outros cenários municipais, pois não atende às demandas da população e desconsidera as especificidades locais.

A inviabilidade da contrarreferência manual aponta para a necessidade de os gestores municipais implementarem alternativas informatizadas para garantir a continuidade das informações sobre as crianças referenciadas entre os pontos de atenção municipal. Estes achados coadunam com o de outros autores sobre a incipiente comunicação entre os serviços nas ações de puericultura e a urgência de um novo modelo de integração informacional entre os profissionais e serviços de saúde (Aires ., 2017AIRES, L. C. P. et al. Reference and counter-reference health care system of infant discharged from neonatal unit: perceptions of primary care health professionals. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, v. 21, n. 2, p. 1–7, 2017.; Caminha et al., 2019; Fernandez et al., 2019).

A conservação de uma organização inflexível na agenda de consultas de puericultura na APS dificulta um cumprimento do atributo da acessibilidade ao cuidado infantil, contribuindo para incompatibilidades entre a organização dos serviços locais e a rotina social das famílias para aderirem às consultas. Estudos ratificam que a oferta de consultas de APS em horários e dias específicos limitam a assiduidade das puérperas ao acompanhamento infantil, o que exige a reorganização de estratégias de marcação com agendas mais flexíveis (Rezer; Souza; Faustino, 2020; Goes ., 2018GOES, F. G. B. et al. Contribuições do enfermeiro para boas práticas na puericultura: revisão integrativa da literatura. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 29, n. 6, p. 2808-2817, 2018.; Rezer et al., 2020).

O acolhimento é imprescindível para que as equipes entendam as singularidades infantis e desenvolvam práticas puerperais centradas na estratificação de risco da família e da criança. A centralização do acolhimento nos profissionais da enfermagem compromete possibilidades de um cuidado interprofissional e colaborativo nas EqSF. Alguns estudos destacam que o acolhimento das crianças realizado por toda a EqSF fortalece a relação entre usuários e profissionais, e a continuidade do acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil (Soares ., 2016SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.; Tavares ., 2019TAVARES, M. N. M. et al. Consulta de enfermagem em puericultura na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Nursing (São Paulo), v. 22, n. 256, p. 3144-3149, 2019.; Soares ., 2016SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.).

Ainda que as diretrizes nacionais e internacionais estabeleçam o incentivo à amamentação enquanto prática central na puericultura (Goes ., 2018GOES, F. G. B. et al. Contribuições do enfermeiro para boas práticas na puericultura: revisão integrativa da literatura. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 29, n. 6, p. 2808-2817, 2018.), este estudo evidenciou que sua implementação tem sido heterogênea entre os cenários locais. Alguns autores destacam que em cenários locais onde há incentivo à amamentação, a prevalência do aleitamento materno exclusivo até o sexto mês é superior a outros cenários locais que não dispõem desta prática rotineiramente (Kellans, 2022KELLANS, A. Breastfeeding: Parenteral education and support. UpToDate. 2022. Disponível em:<https://www.uptodate.com/contents/breastfeeding-parental-education-and-suport?search=aleitamento%20materno&source=search_result&selectedTitle=2~150&usage_type=default&display_rank=2#H3342496321>. Acesso em: 14 dez. 2022.
https://www.uptodate.com/contents/breast...
; Carvalho ., 2018CARVALHO, M. J. L. N. et al. Primeira Visita Domiciliar Puerperal: uma Estratégia Protetora do Aleitamento Materno Exclusivo. Revista Paulista de Pediatria, v. 36, n. 1, p. 66-73, 2018.). Diante da heterogeneidade territorial, destaca-se a importância de qualificar os profissionais para que esse incentivo seja feito de forma mais abrangente e completa, utilizando diferentes estratégias de educação e promoção da saúde.

A contribuição do PBF na indução da pesagem das crianças revelou a importância de políticas com abrangência intersetorial e organizadas a partir de condicionalidades, corroborando, portanto, sinergicamente, a integração de ações para promoção da saúde infantil. Em estudo sobre as condicionalidades do PBF, também foi evidenciado o papel sinérgico do Programa na qualificação das ações de puericultura, em especial, a proporção de consultas em famílias beneficiárias (Silva ., 2016SILVA JUNIOR, C. L. et al. Avaliação preliminar das ações de puericultura em equipe de saúde da família, entre beneficiários e não beneficiários do programa bolsa família. In: FARIAS, J. M. et al. (Org.). Gestão do cuidado em saúde. Criciúma: UNESC, 2016. p. 82-85.).

A CSC é o principal instrumento de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil. As evidências de subregistros das informações necessárias ao monitoramento do desenvolvimento infantil fragilizam a continuidade de informações e apontam a necessidade de qualificar os profissionais da APS sobre a importância de seu preenchimento regular, bem como a educação em saúde de pais de crianças sobre a importância da CSC, para que estes atuem como vigilantes e indutores do registro regular. Há semelhança entre esta avaliação em outros cenários avaliativos quanto ao subregistro na CSC, o que em alguns municípios se justifica pelo desconhecimento dos profissionais da APS sobre o instrumento (Andrade; Rezende; Madeira, 2014; Caminha ., 2017CAMINHA, M. F. C. et al. Vigilância Do Desenvolvimento Infantil: Análise Da Situação Brasileira. Revista Paulista de Pediatria, 2017.).

Os obstáculos para as visitas domiciliares foram uma das estratégias de monitoramento do crescimento e desenvolvimento infantil e parecem descortinar constrangimentos locais na busca ativa das crianças para as consultas de puericultura, a necessidade de instituir debates e qualificações municipais sobre o papel estratégico do ACS enquanto agente integrador da equipe com responsáveis legais e a urgência de ampliar a cobertura destes profissionais em locais mais críticos à visitação infantil.

A qualificação dos encaminhamentos de crianças para atenção especializada e ordenados pelo NASF-AB ratifica a necessidade de estes serviços participarem do itinerário do cuidado infantil e as gestões municipais implementarem qualificações com vistas à melhor integração do apoio assistencial-pedagógico às Eq SF. Nessa direção, Soares . (2016SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.) destacam que o NASF-AB deve atuar como serviço estratégico para o compartilhamento do cuidado em puericultura e como qualificador da referência de casos em outros pontos de atenção infantil. Vale destacar que o novo financiamento da APS tangenciou os NASF-AB e representa um risco de extinção desse serviço em diversos municípios brasileiros (Melo ., 2019MELO, E. A. et al. Reflexões sobre as mudanças no modelo de financiamento federal da Atenção Básica à Saúde no Brasil. Saúde em Debate, [S.L.], v. 43, n. 5, p. 137-144, 2019.), o que pode fragilizar o matriciamento das EqSF no desenvolvimento das práticas de puericultura.

Por fim, a baixa implementação de ações educativas coletivas de puericultura evidencia a necessidade de fortalecer a abordagem comunitária nas EqSF e reorientar a racionalidade das práticas de saúde, ainda centradas no cuidado na perspectiva clínica, curativista e individual.

Os resultados desta pesquisa revelaram que a organização do sistema municipal de saúde influencia a organização local da puericultura, principalmente pela forma como a gestão de uma Secretaria Municipal de Saúde coordena as relações entre as equipes de APS e demais serviços de saúde. Os determinantes municipais afetam o trabalho dessas equipes, principalmente nas práticas que demandam a coordenação vertical do cuidado em puericultura e cujo cenário não dispõe de uma gestão integrada do processo de trabalho para as EqSF; de fluxos assistenciais definidos; de um sistema de referência e contrarreferência e de marcação de consultas e exames informatizado.

As singularidades locais das EqSF possuem um peso importante em critérios que são mais dependentes de ações territoriais. Há semelhanças entre elas em obstáculos relacionados com a rigidez das agendas de marcação e quanto à marcação de consultas e exames especializados, às ações de imunização, ao subregistro de informações na CSC, ao acolhimento das crianças, entre outros.

Destaca-se, como contribuição deste estudo, a realização de uma avaliação que considerou a indissociabilidade entre o nível da gestão municipal e local do cuidado em puericultura. Seus achados podem orientar a formulação de estratégias municipais para reorganizar a gestão e implementar qualificações do processo de trabalho dos profissionais na APS, permitindo a melhoria da qualidade das ações de puericultura para a coletividade. Ademais, a contribuição da proposição de uma SO com critérios validados por especialistas torna potencial sua aplicação em outros cenários avaliativos do país.

A não inclusão de narrativas dos ACS enquanto atores relevantes do cuidado em puericultura, a carência de participação dos trabalhadores e familiares na construção da Situação-Objetivo e a análise centrada em diretrizes protocolares sem incluir critérios que abordassem a qualificação dos profissionais podem ser destacadas como principais limitações deste estudo.

São necessários, ainda, estudos que aprofundem a avaliação da puericultura comparando modelos organizacionais de equipes (com e sem EqSF), que busquem elucidar determinantes locais e municipais da adesão dos responsáveis legais às ações imunização e que investiguem elementos relacionados com a utilização da CSC pelos profissionais de saúde.

Referências

  • AIRES, L. C. P. et al. Reference and counter-reference health care system of infant discharged from neonatal unit: perceptions of primary care health professionals. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, v. 21, n. 2, p. 1–7, 2017.
  • ALMEIDA, P. F. et. al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, v. 42, n. 1, p. 244-260, set. 2018.
  • ALVES, M. D. DE S. M.; GAÍVA, M. A. M. Ações de promoção da saúde na consulta de enfermagem à criança. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 18, n. 2, 2019.
  • ANDRADE, G. N.; REZENDE, T. M. R. L.; MADEIRA, A. M. F. Child Health Booklet: experiences of professionals in primary health care. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. 5, p. 857-864, 2014.
  • ARAÚJO, P. O.; ASSIS, M. M. A.; SANTOS, A. M.; PEREIRA, M. J. B. A oferta por cotas para exames e consultas especializadas atende às demandas das unidades de saúde da família? Revista de Aps, [S.L.], v. 21, n. 3, p. 324-334, 30 jan. 2019.
  • BARREIRAS. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde 2018-2021. Conselho Municipal de Saúde. 185 p.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança: orientações para implementação. Brasília: Ministério da Saúde, 2018.
  • BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Brasileiro. Informações demográficas de Barreiras. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=290320&gt>. Acesso em: 16 mar. 2022.
    » https://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=290320
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de vigilância do óbito infantil e fetal e do comitê de prevenção do óbito infantil e fetal. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.
  • BRÍGIDO A. F. et al. Qualificação do Cuidado a Puericultura: uma Intervenção em Serviço na Estratégia de Saúde da Família. Rev Fund Care Online, v. 11, n. esp, p. 448-454, 2019.
  • CAMINHA, M. F. C. et al. Vigilância Do Desenvolvimento Infantil: Análise Da Situação Brasileira. Revista Paulista de Pediatria, 2017.
  • CARVALHO, M. J. L. N. et al. Primeira Visita Domiciliar Puerperal: uma Estratégia Protetora do Aleitamento Materno Exclusivo. Revista Paulista de Pediatria, v. 36, n. 1, p. 66-73, 2018.
  • CECIL, E. et al. Impact of preventive primary care on children’s unplanned hospital admissions: A population-based birth cohort study of UK children 2000-2013. BMC Medicine, v. 16, n. 1, p. 1-11, 2018.
  • FERNÁNDEZ, M. et al. Intervención Educativa En Atención Primaria Para Reducir Y Mejorar La Adecuación De Las Consultas Pediátricas. Mscbs.Gob.Es, v. 93, 2019.
  • GOES, F. G. B. et al. Contribuições do enfermeiro para boas práticas na puericultura: revisão integrativa da literatura. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 29, n. 6, p. 2808-2817, 2018.
  • KELLANS, A. Breastfeeding: Parenteral education and support. UpToDate. 2022. Disponível em:<https://www.uptodate.com/contents/breastfeeding-parental-education-and-suport?search=aleitamento%20materno&source=search_result&selectedTitle=2~150&usage_type=default&display_rank=2#H3342496321>. Acesso em: 14 dez. 2022.
    » https://www.uptodate.com/contents/breastfeeding-parental-education-and-suport?search=aleitamento%20materno&source=search_result&selectedTitle=2~150&usage_type=default&display_rank=2#H3342496321
  • MACHADO, C. S. et al. Caracterização das crianças atendidas em puericultura na atenção primária à saúde. Nursing (São Paulo), v. 24, p. 6846-6857, 2021.
  • MAGGE, H. et al. Tackling the hard problems: implementation experience and lessons learned in newborn health from the African Health Initiative. BMC Health Services Research, v. 17, n. S3, 2017.
  • MAKHMUTOV, R. The Delphi method at a glance. Pflege, v. 34, n. 4, p. 221-221, 2021.
  • MELO, E. A. et al. Reflexões sobre as mudanças no modelo de financiamento federal da Atenção Básica à Saúde no Brasil. Saúde em Debate, [S.L.], v. 43, n. 5, p. 137-144, 2019.
  • PARKER, C.; SCOTT, S.; GEDDES, A. Snowball Sampling. SAGE Research Methods Foundations, 2019.
  • PEDRAZA, D. F. et al. Avaliação da vigilância do crescimento nas consultas de puericultura na Estratégia Saúde da Família em dois municípios do estado da Paraíba, Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 26, n. 4, p. 847-855, 2017.
  • REZER, F.; VIEIRA DE SOUZA, T.; FAUSTINO, W. R. Dificuldades dos responsáveis por crianças na adesão a puericultura. Journal Health NPEPS, v. 5, n. 1, p. 338-350, 2020.
  • ROJAS-BOTERO, M. L.; FERNÁNDEZ-NIÑO, J. A.; BORRERO-RAMÍREZ, Y.E. Unacceptable persistence of territorial inequalities in avoidable under-five mortality in Colombia between 2000 and 2019: a multilevel approach. Public Health, v. 213, p. 189-197, 2022.
  • SAMI, S. et al. Understanding health systems to improve community and facility level newborn care among displaced populations in South Sudan: A mixed methods case study. BMC Pregnancy and Childbirth, v. 18, n. 1, p. 1-12, 2018.
  • SILVA JUNIOR, C. L. et al. Avaliação preliminar das ações de puericultura em equipe de saúde da família, entre beneficiários e não beneficiários do programa bolsa família. In: FARIAS, J. M. et al. (Org.). Gestão do cuidado em saúde. Criciúma: UNESC, 2016. p. 82-85.
  • SOARES, D. G. et al. Implantação da puericultura e desafios do cuidado na Estratégia Saúde da Família em um município do estado do Ceará. Rev Bra Promoç Saúde, v. 29, n. 1, p. 132-138, 2016.
  • SLUTSKER, J. S.; HENNESSY, R. R.; SCHILLINGER, J. A. Factors Contributing to Congenital Syphilis Cases. New York City, 2010-2016. Centers for Disease Control and Prevention, v. 67, n. 39, p. 1088-1093, 2018.
  • TAVARES, M. N. M. et al. Consulta de enfermagem em puericultura na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Nursing (São Paulo), v. 22, n. 256, p. 3144-3149, 2019.
  • YIN, R.K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3 ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2022
  • Aceito
    28 Jun 2023
  • Revisado
    04 Maio 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br